domingo, 11 de março de 2012

A Princesa escreve ao Conselheiro


























Um menino lê uma carta

Dentre as lembranças mais vivas da minha infância está a "carta do Conde D´Eu ". 
 
Ficava em um quadro emoldurado na parede dos fundos do escritório do meu avô Mauro, entre duas folhas de vidro, não sei se a cópia ou a original, o que, afinal de contas, não importa. Lá estavam, bem à mostra, aquelas letras cheias de floreios em um papel já amarelado, no fim do qual nós, que já conhecíamos da escola os nomes longos e leopoldinos dos tempos misteriosos do Império, distinguíamos um nome inusitadamente curto: Gastão de Orleans. E a data: 17 de novembro de 1889. 

Mas quem era o Joaquim Delfino, a quem era endereçada a carta? Minha avó Luiza explicava que era seu avô, pai de seu pai, amigo do Conde D´Eu e do próprio imperador, de quem era Conselheiro e a quem servira como ministro da Justiça, da Marinha, da Guerra e outros cargos pomposos. No dia seguinte estava com uma cópia, tirada de em uma gaveta, e menino orgulhoso, mostrava a todos os colegas da escola pública que frequentava. Mais que atiçar a vaidade infantil, a carta me mostrou que a história não estava apenas nos livros escolares. Correndo no nosso sangue, tornava-nos parte dela. E 1889, de uma data distante, passou a ser ainda ontem. 



                                                                O Conselheiro Joaquim Delfino Ribeiro da Luz  (1824 -1903)


Meus avós se foram e a carta foi parar na gaveta profunda - e cheia de coisas estranhas - da mesa do meu pai, em seu escritório. Lá ficou junto a rolos velhos de negativos, fotos desgarradas de meninos tristes com erupções de pele, vidrinhos com dentes de leite dentro e uma papelada danada. E a carta passou a ter todo o tempo do mundo para contar àqueles objetos “modernos” aquele e outros causos que se ouviam nos derradeiros momentos do Império, e, quem sabe, desde os tempos de D. João VI.

Certamente a velha carta, que o tempo tratou de dar vida, não a ela, mas às mãos que a escreveram e aos tantos dedos que a tocaram, hoje quietos, contou suas histórias em muitas outras gavetas. Ninguém sabe por onde andou: da gaveta de Joaquim Delfino à de seu filho Joaquim Bento? Da escrivaninha deste à de seu filho Joaquinzinho? Da mesa de cabeceira do tio Joaquinzinho à gaveta de sua irmã, minha avó? 

O fato é que, de esconderijo em esconderijo, foi parar na gaveta em que repousará para sempre, depois de 122 anos, no Museu Imperial de Petrópolis. Lá, entre tantas outras, poderá contar sua história, não a objetos de ouvidos moucos, mas aos olhos sempre vivos dos que se interessarem por sua pequena história.
 
Os documentos históricos e os objetos de família são como os livros: nunca serão nossos, mas apenas passam por nós. Sobreviverão a nós se formos seus bons e fiéis guardiães. 

A carta conta suas histórias

No início da década de 1860 Joaquim Delfino Ribeiro da Luz foi nomeado conselheiro do Império. Em homenagem à imperatriz Teresa Cristina, mãe da princesa Isabel e esposa de D. Pedro II, propõe então à câmara municipal da velha Espírito Santo do Cunquibus, da qual era presidente, uma nova denominação para o lugar: Vila Cristina.

Em 1868 a jovem Princesa Isabel, de 22 anos, e Dom Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, o Conde D´Eu, seu esposo francês, fizeram uma viagem pelo sul de Minas. Os objetivos, aparentemente, não eram só amarrar laços políticos e retribuir favores: após quatro anos de casamento, a Princesa Isabel queria engravidar.

                                                                                        A jovem Princesa Isabel


É que ouvira falar das “águas virtuosas” de Caxambu. Conhecidas desde há muito pelos índios Cataguases que habitavam a região, a existência das fontes hidrominerais foi tornada pública apenas no início do século XIX, quando sua fama se alastrou. O interesse do casal imperial estava voltado mais especificamente para as fontes de águas ferruginosas. É que a Princesa sofria de anemia crônica e esta, segundo os médicos, era a principal razão desua infertilidade. Passou pouco mais de um mês em Caxambu, restabelecendo-se de sua anemia. 

Era hora de pagar promessas. Após orações públicas dirigiu-se ao alto de um morro e, em cerimônia ali realizada, lançou a pedra fundamental da Igreja de Santa Isabel de Hungria. Foi lavrada ata oficial e formada uma Comissão Construtora, subscrevendo-se para isso uma quantia razoável. Joaquim Delfino muito provavelmente estava presente.

                                                                                    As fontes ferruginosas D. Isabel/Conde D´Eu


Enquanto isso, uma grande movimentação quebra a calmaria da nova vila de Cristina: naquele primeiro dia de dezembro de 1868 as sinhás usam seus vestidos e joias mandados vir da Corte. Os coronéis penduram no peito suas condecorações, suas veneras. Chega então a importante comitiva imperial, vinda de Caxambu, a fim de agradecer a homenagem prestada pela Vila Cristina à mãe da princesa. Às onze horas da manhã o cortejo entra pela rua direita. Das janelas e sacadas descem colchas rendadas. A banda toca empolgada. A multidão de todas as cores grita vivas das ruas e do alto dos sobrados. Em seguida as pessoas importantes do lugar vão até a casa de Joaquim Delfino, anfitrião do casal real, para o beija-mão protocolar. Após o banquete, todos seguem para a Matriz para ouvir o Te Deum mandado celebrar pela câmara em ação de graças “pela feliz viagem de S.S.A.A e pela distincta honra que fizerão a esta Villa com sua vizita”. Às seis horas da manhã do dia seguinte a comitiva deixa Cristina.


                                                                                      A visita do casal imperial a Cristina foi motivo de grande festa


Algum tempo se passou e a Princesa finalmente engravidou. Entretanto, as primeiras gestações não tiveram sucesso, advindo vários abortos. A primeira gravidez que levou a termo resultou em uma menina que nasceu morta, após um trabalho de parto difícil, que durou mais de 50 horas, em que os quatro obstetras que a assistiam tiveram que abrir o crânio da criança para tentar fazê-la passar pelo canal. Foi só em 1875, onze anos depois de casada, que veio à luz D. Pedro de Alcântara. Mas o menino nasceu asfixiado em conseqüência de um fórcipe e sofreu lesões no braço esquerdo, que ficou paralisado. Isso lhe valeu o apelido de Mão Seca. Nos anos seguintes a realeza brasileira ganhou outros dois herdeiros, Dom Luiz Maria e Dom Antonio.


                                                                                                   O casal imperial e seus três filhos


A construção da Igreja de Santa Isabel da Hungria seguiu aos trancos e barrancos, mesmo após o nascimento dos três filhos desejados, embora outras promessas tenham sido cumpridas de forma mais imediata. Em 6 de novembro de 1884, por exemplo, ofereceu a Nossa Senhora uma coroa de ouro cravejada de brilhantes, que mais tarde, em 1904, coroou a Imagem de Aparecida como Rainha do Brasil, e em cuja cabeça repousa ainda hoje.


                                                                                              A coroa de Nossa Senhora de Aparecida


Dois dias após a proclamação da república, Isabel e esposo estavam a caminho da Europa a bordo da canhoneira Parnayba, que os levaria ao paquete Alagoas para uma viagem sem retorno. Pode-se apenas imaginar os pensamentos que inundavam os sentidos de Isabel, que vivera seus 42 anos em terras brasileiras; um nada, se comparado a toda uma longa vida aqui vivida por seu pai, o já idoso D. Pedro II.



                                                                                                       O paquete Alagoas


Entretanto, entre tantas aflições e pensamentos desencontrados, lembrou-se daquela promessa, feita anos antes, e, fazendo da pena de seu marido certamente eco de suas palavras, escreveu àquele com quem compartilhara a mesa 20 anos antes, em Cristina, e que, desde 1885, ocupara os cargos de Ministro da Justiça e Ministro da Guerra do Brasil. Joaquim Delfino, embora agora afastado do círculo de poder no novo regime republicano, lhe parecia o único capaz de lhe acalmar esta aflição, a aflição do exílio.


Exmo. Sr. Cons.ro Joaquim Delfino,
Tendo de retirar-me, bem com pesar meu, d´este paiz não quero deixar de mais uma vez recommendar à tua protecção, em nome da Princeza e no meu, a conclusão das obras da Capella de Santa Isabel de Hungria, no arraial de Cachambú, município de Baependy. Estas obras pias, projectadas desde seu começo pela Princeza, teve (sic) certo impulso principalmente devido aos esforços de V.Exa. e de seu illustre filho o distincto engenheiro Dr.Christiano Ribeiro da Luz.
Será para nós grande satisfacção saber que não fica ella abandonada, mas que marcha para sua conclusão. Confiando pois no espírito religioso de V.Exa. e de seu digno filho, e nos sentimentos de amizade que nos tens mostrado, ouso esperar que mais uma vez tomarás em mão este piedoso emprehendimento.
Aproveito com prazer esta opportunidade para reiterar-lhe a expressão dos meus sentimentos de particular consideração e estima.
Gastão de Orleans
Bordo da Canhoneira Parnahyba,
Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1889”

Não se sabe exatamente como Joaquim Delfino intercedeu a favor da continuação das obras, mas elas prosseguiram, ainda que lentamente, tomando as feições do estilo neogótico tão característico das construções religiosas de fins do século XIX e primeira metade do século XX. A partir da década de 1890 as obras foram tomadas pelo engenheiro Honorato Pereira de Carvalho, sob os auspícios do Conselheiro Francisco de Paula Mayrink, 15 anos mais jovem que Joaquim Delfino. 

Mayrink era detentor da maior fortuna pessoal do Brasil na época, e seus interesses abrangiam todo tipo de negócio: bancos, companhias de estradas de ferro, iluminação a gás,  imprensa, teatros e diversos empreendimentos industriais. Em Caxambu deu início à exploração comercial das águas minerais, e hoje uma das fontes do Parque das Águas leva seu nome. Graças a ele a Igreja de Santa Isabel de Hungria foi finalmente consagrada, em 1897. Na França, onde cumpria exílio e onde veio a falecer em 1921, Isabel deve ter sorrido. O velho Joaquim Delfino, no Rio de Janeiro, também sorriu. Promessa cumprida.



                                                                                                                      A Igreja de Santa Isabel de Hungria


A carta vira notícia

 Em 13 de agosto de 2011 uma pequena comitiva formada por pelos bisnetos de Joaquim Delfino: Nelson Ribeiro da Luz Lobo Martins e seu irmão Mauro Lobo Martins Jr.,acompanhados das respectivas esposas Maria Josephina e Maria do Rosário, passou por Petrópolis. No Museu Imperial esperava por eles seu diretor, Maurício Vicente Ferreira Jr. Em uma cerimônia simples Nelson, seu penúltimo guardião, assinou o termo de doação da carta, que passou a uma gaveta daquela instituição, onde estará à disposição dos pesquisadores.




                                                  Nelson assina o termo de doação da carta ao Museu Imperial,
                                                  representado por seu diretor, Maurício Vicente Ferreira Jr.   


Assim noticiou o evento o site do Museu Imperial de Petrópolis:

 http://www.museuimperial.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2070:museu-imperial-recebe-doacao-de-carta-escrita-pelo-conde&catid=14:news-releases&Itemid=107

Museu Imperial recebe doação de carta escrita pelo conde d'Eu em 1889

Recentemente, o Museu Imperial recebeu uma importante doação para seu Arquivo Histórico. O médico Nelson Ribeiro da Luz Lobo Martins doou uma carta escrita em 17 de novembro de 1889 pelo conde d'Eu para Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, que foi magistrado, político e proprietário rural brasileiro. O Dr. Nelson é bisneto de Joaquim Delfino e recebeu a carta de seu pai, após o documento ter sido passado de geração em geração.

 Como a data aponta, a carta foi escrita dois dias após a Proclamação da República. O marido da princesa Isabel estava a bordo do navio Parnaíba, que levou a família imperial até o navio Alagoas para partir para a Europa rumo ao exílio.

 Na carta, o conde d'Eu solicita que Joaquim Delfino dê procedimento às obras de construção da Igreja de Nossa Senhora da Hungria, em Caxambu (MG). A igreja havia começado a ser construída em 1868, em cumprimento a uma promessa feita pela princesa Isabel.

 A correspondência passará a integrar o acervo do Arquivo Histórico, que conta com mais de 200 mil documentos, incluindo cartas, fotografias, ilustrações e outros.

Esta informação foi replicada por pelo menos vinte e sete outros sites de notícia, entre eles: Folha on-line, O Globo, Jornal Floripa e Tribuna de Petrópolis, além de sites de diversas instituições museológicas.

  
A beleza de uma carta

 
Apenas uma carta amarelada pelo tempo, escrita a caminho do exílio. Mas onde podemos encontrar a beleza, fora da perfeição da natureza, senão nos nossos pequenos gestos de desprendimento, em meio à dor, humanos e falíveis que somos?






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