terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O País Invisível

Por Pedro Lobo Martins




Pobre é a sociedade em que a expressão do vício e a execração da virtude são confundidos com a própria virtude. Em que o escrupuloso se confunde com o criminoso e o inescrupuloso é transformado em santo. Pobre é a sociedade em que as reputações se baseiam nas aparências e as aparências resumem-se a fáceis e convenientes locuções verbais. Pobres de nós, que, ao perdermos controle do reconhecimento público de nossas ações, perdemos também as nossas reputações e a nossa humanidade.

Enquanto vivíamos nas aldeias primordiais, conhecíamos bem os nossos vizinhos. Eram todos nossos parentes, nossos amigos ou nossos inimigos.  Conhecíamos o nome, a personalidade e o caráter de cada um deles. Eram apenas uns cento e cinquenta. Não havia como uma pessoa fugir de seu histórico, baseado em suas ações. Pequenos desvios voluntários de conduta podiam ser admitidos, pois mesmo o perdão e a tolerância fundamentam-se na reputação. Durante séculos foi vital manter uma boa reputação.

Com a urbanização as pessoas deixaram de conviver e de se conhecer. Nas cidades, históricos pessoais são ficções cujos principais atores são as intrigas e as fofocas. Vivemos a era da  falta de reputações, ou melhor, das falsas reputações, em que o fio da barba foi substituído pelo contrato não honrado e em que os valores e virtudes consagrados cederam lugar ao relativismo, que coloca o eterno revisionismo como valor em si próprio. E os revisores somos cada um de nós. Somos deuses sem reputação, ou melhor: julgamo-nos deuses e conferimos a nós mesmos a reputação que bem desejarmos, pois ninguém se importa.

Talvez por isso as belas palavras tenham substituído as belas ações. É mais fácil falar bem do que agir bem. É mais imediato falar bem do que esperar o resultado das nossa ações. E ainda talvez por isso o homem moderno seja tão incapaz de desculpar-se com os outros e consigo próprio. A mea culpa está em extinção. Quem pode dizer que uma pessoa está errada quando o erro é tão relativo? Quando respeitamos as leis é por medo da punição e não por deferência ao que é certo. O certo não é tão relativo?  Não ensinamos mais aos nossos filhos o que é justo, pois mesmo a justiça, essa grande e fugidia virtude, não é tão relativa? A única reputação que procuramos manter é a de que somos cheios de certezas.




A democracia moderna, nascida das guilhotinas da Revolução Francesa, pode-nos parecer a principal culpada pelo relativismo moral. Não foi ela que deu todo o poder ao povo, a cada um de nós? Todos podemos opinar e votar de acordo com nossos valores relativos, nossos conceitos relativos e nossas certezas relativas. Mas, e aí está a virtude da democracia, espera-se que a mediana seja melhor do que os extremos. Um canalha não pode, com seu voto, mudar o mundo para pior. As pessoas de bem, que são aquelas que, apesar de tudo, ainda se preocupam com a sua reputação (ainda que em foro íntimo), não deixarão. Tomara.

Platão considerou a possibilidade de um homem sem qualquer reputação. Em sua Republica, traz-nos a alegoria do Anel de Giges, que, tornando o seu possuidor invisível,  isenta-o de qualquer preocupação com o que os outros pensam ou deixam de pensar dele, ou com qualquer consequência de seus atos, no presente ou no futuro. Uma proposta nada desagradável ao homem moderno. Mas Platão chegou à conclusão de que o homem invisível seria um ser individualista, preocupado apenas em saciar suas vontades mais vãs e suas ambições mais materialistas, sem qualquer compromisso com a justiça. Um retrato nada distante do homem moderno.




Não somos todos um pouco invisíveis nas ruas de nossas cidades, ainda que não procuremos esconder nossos rostos atrás das máscaras do anonimato? A invisibilidade nos dá o poder (ou a maldição) do anel de Giges, e não o contrário, mas em compensação nos confronta com a injustiça, e ainda: nos dá o poder de escolher o que nos parece ser justo. Assim é com a democracia. Cada um de nós é apenas uma voz invisível no meio da multidão. Mas temos uma voz, que pode ser usada para o bem ou para o mal. Por isso nenhuma voz deve ser censurada, pois a vorberreia dos canalhas se perderá no meio da multidão. 

Mas pior e mais perigoso do que o homem invisível é o governo invisível. Quando o Anel de Giges cai nas mãos dos poderosos, o estrago costuma ser muito maior. Na política, transferimos o poder a outros na esperança de que façam o que é justo. A justiça e a liberdade são o que a sociedade recebe quando cada um de nós dá em troca uma parte de sua própria liberdade. Se a alegoria de Platão estiver correta, então é bom ficarmos atentos com os governos autoritários e com aqueles que os apoiam. O autoritarismo é uma forma de invisibilidade, e a invisibilidade leva, como concluiu Platão, à injustiça.

Pobre é a sociedade em que a expressão do vício e a execração da virtude são confundidos com a própria virtude; em que o escrupuloso se confunde com o criminoso e o inescrupuloso é transformado em santo. Em que os homens perdem suas reputações e os governos se tornam invisíveis. 



domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Década Perdida

O PT saqueia o país há mais de uma década. E o saque não é apenas econômico, mas  de natureza muito pior: trata-se de um saque ético. Esta é a conclusão a que se chega ao final do livro do historiador Marco Antonio Villa, para quem o partido legou-nos dez anos de atraso.  Nenhum partido, no Brasil, está livre de críticas e de denúncias de corrupção. Mas em "Década Perdida- 10 anos de PT no Poder (Editora Record)" o autor trata com grande lucidez daquilo que nós, amantes da liberdade, temos visto acontecer cada vez mais, desde 2002: a extirpação da ética na vida publica e a  gradual consolidação de um sistema de vale-tudo em que o partido da estrela e seus inúmeros aliados de ocasião se valem do aparelhamento do Estado e da cooptação espúria para dominar o cidadão e auferir benesses pessoais.





Lula deu novo sentido histórico às velhas oligarquias estaduais, acobertou casos de corrupção, transformou o PT em simples correia de transmissão de sua vontade pessoal, infantilizou a política e privatizou o Estado em proveito do grande capital e seus aliados. O ideal de homens públicos desapareceu e foi substituído pela triste realidade da aceitação quase universal e inconteste de políticos profissionais sem qualquer compromisso ideológico. Se políticos, de uma maneira geral, nunca foram bentos, a República petista transformou a sociedade em um ente invertebrado, amorfo, passivo e sem capacidade de reação.

Tudo isso em um clima que beira o de caça às bruxas, que transformou adversários políticos em inimigos do Brasil, para o mal da democracia e do nosso futuro e o dos nossos filhos. Villa, como muitos de nós, está farto disso.

Abaixo faço a minha interpretação do seu excelente texto, pincelada aqui e ali com observações pessoais minhas, fruto da indignação que nasce da constatação de que o PT e o lulismo, com todos os (des)valores que representam, são filhos dos seus eleitores, bem ou mal intencionados, mais ou menos instruídos em matéria política. A minha indignação, portanto, se dirige também aos eleitores inveterados do PT.

LULA, O GRANDE IRMÃO





Lula ficou em estado de êxtase com a sua eleição. Misturando o ufanismo tupiniquim-retrô ao revisonismo histórico de Josef Stalin em seu discurso de posse, dava início a uma catarse coletiva, quase religiosa, cheia de ímpetos de emoção, digna dos regimes totalitários em seus primeiros dias. Na festa de posse (paga por Marcos Valério), em meio às delegações estrangeiras, Lula não economizava em auto-elogios, o que deve ter arrancado alguns sorrisos indulgentes dos representantes mais sérios ali presentes. Com Lula, acreditavam os ingênuos, tudo mudaria. Foi como se D. Sebastião repentinamente tivesse deixado sua tumba quinhentista de Alcácer-Quibir para finalmente retornar, transfigurando-se na figura barbuda de um novo salvador da pátria. Ou talvez transformação melhor fosse aquela que desejou Frei Betto, digno defensor da ditadura cubana e do militarismo de esquerda: " que todos  fossem filhos, na vida pessoal e profissional, do casamento de Ernesto Che Guevara com Santa Teresa - a escolher - de Ávila ou Calcutá". Mas Frei Betto não pararia por aí. Logo estava comparando D. Lindu, a falecida mãe de Lula, a Maria, e o novo presidente ao Messias. Lula transformava-se, portanto, no imaginário popular, em um misto de D. Sebastião, Che Guevera e Cristo! Uma mistura explosiva... e conveniente. O estilo personalista de governar seria a marca registrada de todo o período Lula.


 O BODE HORTELÃO.



Já nos primeiros dias de seu governo, Lula parecia mais um bode cuidando da horta pública. Vários de seus ministros trataram de administrar suas pastas em benefício próprio e de seus aliados. Em um ímpeto de zelo sem propósito, outros (José Graziano, Cristóvão Buarque) resolveram convocar o exército para a luta cotidiana contra a fome e o analfabetismo. Só se esqueceram de verificar se a Lei permitia isso.

No Campo externo, hábil político que era, soube adicionar à sua figura  uma outra estrela: a de um pragmático presidente da terceira via, coisa conveniente naquele momento. Esse ar pragmático era necessário para acalmar os justificados temores do empresariado e da classe média com relação à agenda de Lula. O presidente, apesar de seu conhecido discurso, no final das contas tinha os pés no chão (?)

Também no campo da economia Lula soube equacionar dois mais dois, tratando de manter os fundamentos econômicos firmes que seu antecessor, FHC, lhe havia legado, e a estabilidade econômico-financeira. O cenário externo ajudou - e muito. As exportações e as reservas internacionais aumentaram, devido sobretudo ao importante papel representado pelo mercado chinês. Finalmente, em sua "Carta ao Povo Brasileiro", Lula passou seguramente a  impressão, pelo menos aos crentes, de que perseguiria uma agenda de centro.

Mas  as coisas não seriam tão simples assim. As bases, tanto as vermelhas quanto as sem cor alguma, estavam inquietas. Ao contrário do que se esperava dele, Lula manteve - e aprimorou - o tradicional "é dando que se recebe". As raposas velhas (leia-se, principalmente, PMDB) ficaram satisfeitas com o velho bode. O fisiologismo voltava com força total. Os petistas começavam a saborear os mesmos privilégios que "combateram" durante décadas. Os principais líderes engordaram e adquiriram mulheres mais novas; e, para fazer jus a seu novo status, trocaram a cerveja e a cachaça pelos mais caros vinhos que pudessem encontrar nas cartas dos melhores restaurantes de Brasília.




ÁVIDAS SANGUESSUGAS

A manutenção da política econômica de Fernando Henrique Cardoso acalmou muitos ânimos. Foi um golpe de mestre. Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, escreveu: " O que deu certo no governo, nos primeiros cem dias, foi o que não mudou". Mas o programa de reformas (Previdência, Tributária etc) não deslanchou. As bases mais radicais do PT não deixariam.

Enquanto isso, Lula caía nas graças do povo. Seu evidente carisma e a "simplicidade" que conferia a seus inúmeros discursos o tornavam bem visto. Não é que o povo brasileiro gosta mais de quem é "gente boa" do que de quem é "gente honesta"? Enquanto vários ministros mostravam desempenho decepcionante, um em particular sobressaía: o da Casa Civil, José Dirceu, que, pelo Decreto 4734, de 11 de junho de 2003, adquiria poderes de primeiro-ministro. Dirceu transformar-se-ia na principal sanguessuga do governo.

Mas não era o único. A sede de sangue era grande. O MST, cujo principal objetivo não é a reforma agrária, mas o controle dos miseráveis e analfabetos do campo para fins políticos-partidários, logo entraria com mais força do que nunca no páreo. O PT precisava - e ainda precisa - dessa sanguessuga. FHC assentou mais gente do que Lula. João Pedro Stedile que o diga.




Começava a temporada de saque ao tesouro, de roubo aos contribuintes. Era como se o  PT entendesse que, em vez de socializar os meios de produção, a socialização seria do Tesouro, numa versão macunaímica do socialismo marxista. e socializar significava, para os lapelas-estreladas, distribuir para os amigos. Todos participaram da pilhagem, mas as raposas do PMDB, não satisfeitas, queriam mais. Depois de um pouco de charme jogado fora, acabariam entrando, oficialmente, no governo. Naturalmente, a negociação levara em consideração os ministérios que mobilizavam maiores volumes de recursos. Sarney, dono do Maranhão e ícone das oligarquias retrógradas dos rincões do Brasil, seria a mais poderosa raposa.





ESCÂNDALOS, ESCÂNDALOS, ESCÂNDALOS. CALMA, É TUDO NORMAL

Os escândalos, a partir daí, se sucederiam:  compra do aerolula; viagem particular de Benedita da Silva a Buenos Aires com tudo pago pelo erário; Waldomiro Diniz, assessor de José Dirceu; Celso Daniel; Antônio Palocci; expulsão do jornalista Larry Rother; Operação Vampiro, Correios; Furnas, Infraero, Bingos, Aloprados. Todos esses escândalos, que se sucediam em velocidade assustadora, deixavam claro o fisiologismo petista e as amplas redes de corrupção que se consolidavam. Pior, a maneira antidemocrática e nada transparente de sua condução  deixava claro o latente autoritarismo, que adquiria contornos bem claros.

Mas a fogueira das vaidades não queimava ninguém, muito menos Lula e Sarney, eternamente blindados. Lula, ao contrário, dava sempre um jeito de auferir dividendos políticos de situações sobre as quais, garantia, nada sabia. Até que estourou o pior escândalo de todos: o do Mensalão. Só então Lula se viu obrigado a  por suas barbas de molho.

O Mensalão não foi simplesmente - o que já seria grave - um esquema de financiamento  eleitoral com recursos não contabilizados. Comprovava-se, em juízo, que se tratava de desvio de dinheiro público com o objetivo de  instrumentalizar financeiramente - para fins políticos - o PT e suas principais lideranças, garantindo apoio parlamentar através de uma mesada  - um mensalão - para os deputados da base. Todas as evidências e testemunhos deixavam claro que Lula, no mínimo, tinha ciência do mensalão mas não tomara qualquer providência saneadora.

Os líderes da oposição não responderam com a coragem que lhes cabia, restringindo-se a pedir "moderação". Sem coragem de partir para o devido enfrentamento, Aécio Neves falou que Lula tinha uma biografia respeitável e que "não era Collor". Nunca foi a mesma a moderação dos petistas ou a sua preocupação com a biografia de FHC... Aliás o próprio FHC cometeu o erro crasso de se posicionar contra qualquer proposta de impeachment de Lula, o que terá um enorme custo histórico. O Senador Arthur Virgílio teve melhor posicionamento em um discurso: "Na melhor das hipóteses, Sr. Lula, o senhor é um idiota! Na pior, o senhor é um corrupto!". E explicaria que idiota era elogio, pois se "chamar de corrupto, teria de pedir o impeachment". Apesar disso, a oposição acreditava na estratégia - que se provaria errônea - de lento desgaste do governo.





Lula fez de tudo para desmobilizar a CPMI que se afigurava no Congresso, obrigando deputados a retirar seus nomes da petição. O PT chegaria a ameaçar seus parlamentares dissidentes com a retirada do direito de concorrer às eleições de 2006. Dentro da tradição de cooptação do Congresso, o Planalto prometeu liberar R$400 milhões em emendas para os  parlamentares. Tratou ainda de bradar aos quatro ventos que uma CPI traria turbulências à economia e que a intenção dos seus delatores nada mais era do que criar uma cortina de fumaça para encobrir o golpe que a "direita" estaria organizando. De modo forçado, alguns comparavam aquela situação à de pré-64.  Ardilosamente, Lula desviava  o foco da questão central - a corrupção - para um suposto fracasso do país e a uma perseguição ideológica. Dentro da tradição autoritária nacional, associava seu governo ao próprio Brasil, de modo que uma crítica à administração federal seria ato antipatriótico. Dava início a uma nova versão autoritária do "Brasil: ame-o ou deixe-o", ou, traduzindo: " Lula: apoie-o ou você é inimigo do Brasil". Procurava, assim, encobrir suas próprias culpas.





"POBRES" PETISTAS

Enquanto isso, em meio a novos escândalos, denúncias de malversação do dinheiro público e operações da Polícia Federal, envolvendo nomes ligados ao PT e mesmo filhos de Lula, o choro petista tornou-se universal. Delúbio Soares choraria três vezes ao defender-se das acusações; José Genoíno chorou no programa Roda Viva; Eduardo Suplicy chorou ao dizer que assinaria o requerimento, mas voltou atrás - puro jogo de cena. Enquanto isso, Lula invertia sua posição na questão, dando sempre um jeito de passar de denunciado de corrupção a denunciador de mazelas. Enquanto o caso do mensalão avolumava-se e atormentava o seu partido, Lula blindava-se e fazia de tudo para deslocar o eixo de debate político para o das questões econômicas, onde a oposição teria menos o que falar.

Mas, mesmo nesse eixo, algumas vozes  dissonantes internas se faziam ouvir. Uma delas era a de Dilma Rousseff, que clamava por mudanças nos rumos em direção a uma maior envolvimento do Estado nas questões econômicas. Defensora intransigente do desenvolvimentismo, Dilma bombardeava a política econômica ortodoxa de Palocci, identificando a Fazenda como um obstáculo para a aceleração da economia. Aliás, para variar, Palocci logo estaria envolvido em mais um escândalo, quando o caseiro Francenildo Costa relatou que o ministro frequentava a mansão do Lago Sul, onde aconteciam reuniões regadas a malas de dinheiro e garotas de programa. Contra todas as evidências, claríssimas, Lula o defendia: " Eu devo muito de tudo que fizemos a um homem chamado Antonio Palocci. Não é economista, é médico, por isso ele ganhou." Em seguida, Palocci envolveu-se na quebra do sigilo bancário do caseiro denunciante, juntamente com o presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, e só com os desdobramentos da questão é que finalmente caiu.


REELEIÇÃO A TODO CUSTO: TODO MUNDO É COMPRADO

Em meio às inúmeras denúncias de malversação do dinheiro público e de corrupção política, membros do governo e, principalmente, Lula, tratavam de desmentir o ocorrido. Ainda que as evidências, e mesmo provas, se acumulassem. Por mais que Lula procurasse blindar seu governo, sua situação ficava mais difícil à medida que se aproximavam as eleições de 2006. Foi então que começaram a surgir denúncias de uso político de facções criminosas e movimentos criminoides. Em maio daquele ano, o Primeiro Comando da Capital (PCC)  realizou uma grande quantidade de ataques em São Paulo, estado governado pelo PSDB, com 300 atentados, 82 rebeliões em presídios e mais de 130 mortos trinta dos quais policiais. Em junho, uma horda do Movimento de Libertação dos Sem Terra, liderados pelo petista Bruno Maranhão, invadiu e depredou as instalações da Câmara dos Deputados. Qualquer semelhança com o que acontece em 2013-2014 não será mera semelhança.

Mas Lula queria reeleger-se a todo custo. Começou então a temporada de alianças espúrias e cooptações. Associou-se aos políticos mais retrógrados e corruptos do país, emprestando novo sentido e legitimidade às antigas e carcomidas oligarquias que um dia execrara: os coronéis do norte e nordeste e as raposas do centro-oeste, sul e sudeste. Garantiu o apoio do grande empresariado e da burguesia de rapina, fortalecendo o brasileiríssimo "capitalismo de laços" e adotando uma política de associação e financiamento através dos bancos públicos e das empresas estatais; dominou os fundos de pensão controlados pelo governo e investiu na base da pirâmide social, saciada pelo Bolsa Família e outras iniciativas assistencialistas. Neste caso, milhões de famílias passaram a receber benefícios permanentes, pois os programas, na prática, só têm porta de entrada.





Lula dominou as centrais sindicais, os movimento sociais e os "desorganizados"; cooptou um sem-número de ONGs fajutas, que chafurdaram no dinheiro público; com seu discurso fácil, superficial e politicamente correto, atraiu (porque não dizer aprisionou?) uma horda de jornalistas chapa-branca,  intelectuais, pseudo-intelectuais e artistas, interessados em tornar-se celebridades agraciadas por verbas fáceis do Ministério da Cultura. Alguns desses artistas não esconderam sua essência: Paulo Betti, manifestando apoio ao presidente, disse que não era possível fazer política "sem por a mão na merda". O músico Wagner Tiso, por sua vez, falou que "não estava preocupado com a ética do PT". Até uma parte da classe média "boazinha" e com sentimentos de culpa aderiu ao discurso fácil de Lula e seus aliados. Poucas foram os que ousaram posicionar-se contra essa onda, essa corrente avassaladora de aniquilação das consciências. Lobão foi um deles (veja o post cave ab homine unius libri: Manifesto do Nada na Terra do Nunca, neste blog)




Embora o petismo estivesse, em tese, sepultado desde os escândalos em que se envolveu e na lama em que se atolou desde 2003, anunciava-se um novo tempo: se na Venezuela havia o chavismo, no Brasil nascia o lulismo. E o lulismo, como o chavismo, precisava de pessoas e instituições regiamente financiados por estatais para louvá-lo diuturnamente e, mais especialmente, exaltar o seu guia genial, Luiz Inácio Lula da Silva.




O legislativo não fugiu à regra. Domado, foi transformado em correia de transmissão dos interesses do governo recebendo, é claro, o devido pagamento. Igualada a inimiga do povo, a oposição esvaziou-se. Os partidos perderam qualquer caráter ideológico que lhes restasse. Lula, entrementes, continuava a fazer política e a usar e abusar de suas metáforas recheadas de ironia e vazias de conteúdo, de seus clichês fáceis. Lula apequenou o Brasil.

Apesar disso tudo, ou melhor, estando no Brasil: devido a isso tudo, Lula obteve a sua reeleição, em 2006. Passou então a sentir-se o todo poderoso, o verdadeiro e único dono do PT e, porque não dizer, do Brasil. O partido logo transformou-se em mero apêndice das vontades de Lula e o país, vítima de suas ambições pessoais.

TRISTES TRÓPICOS

Depois que ministros de Lula compareceram ao reveillon patrocinado pela Coca-Cola vestidos de preto e vermelho, a cerimônia de posse foi sem graça. Gilberto Gil beijou a mão do novo deus, mas estava evidente o desinteresse popular. Em breve, no Congresso, Lula daria mais uma vez vazão a seu autocentrismo piegas e sentimentaloide: "Pela primeira vez, um homem nascido na pobreza, que teve que derrotar o risco de morte na infância e vencer, depois, a desesperança na idade adulta, chegava, pela disputa democrática, ao mais alto posto da República". Pergunto-me se Lula vislumbraria outro meio de chegar ao poder senão pela "disputa democrática". Em breve, em seu novo mandato, ficaria patente o abandono do figurino Lula "paz e amor" pelo de "Lula, ame-o ou deixe-o" do regime militar (a propósito, quantas semelhanças entre Lula e os militares!)

Tendo cooptado e comprado vastos setores da sociedade e da intelectualidade, trazidos convenientemente para o seu lado e para a sua tutela, Lula partiria agora para o enfrentamento e aniquilamento da oposição. A cada dia eram revelados novos detalhes do uso da máquina de Estado para tentar coagir seus adversários. Quem estivesse com ele receberia as benesses do poder. Quem tomasse posição contrária seria esmagado, considerado inimigo do povo e do Brasil. Cada vez mais o Brasil de Lula se parecia com as repúblicas bolivarianas da América Latina. Não é à toa que, entre 2003 e 2006, consolidou-se uma "aristocracia sindical" dependente da transferência de milhões por parte da corte palaciana e servil aos seus interesses.


AMIGO DE DITADORES

Lula sempre procurou alinhar-se com regimes retrógrados e antidemocráticos.  Com a eclosão do escândalo do mensalão, recebeu, é claro, apoio dos aliados ideológicos. Em um evento em São Paulo que reunia as esquerdas latino-americanas, o representante  dos sandinistas nicaraguenses, por exemplo, afirmou que tudo não passava de "uma campanha de denúncias para desestabilizar o governo Lula e sua luta contra a fome e em defesa dos grupos menos favorecidos". Na mesma linha foi o delegado equatoriano: "Todas as vezes que uma força democrática progressista é eleita, os reacionários arremetem com violência. Isso é o que está ocorrendo no Brasil". A declaração mais bizarra, porém caberia ao representante argentino: Lula está sendo atacado por forças imperialistas europeias e americanas". O alinhamento - praticamente isolado - com o regime autoritário do Irã não seria, portanto, nenhuma surpresa. Evo Morales aumentou o preço do gás e Lula aceitou sem negociar. Evo Morales ocupou refinarias da Petrobrás e as estatizou, ou melhor, as "comprou" militarmente. Lula, mais uma vez, achou perfeitamente natural. Sua proximidade ideológica com o regime de Morales falava mais alto do que qualquer interesse nacional. Ao mesmo tempo, jogou R$ 8 bilhões fora na arremetida insensata e inacabada da transposição do São Francisco. Com propinas e tudo.



A aproximação com o regime decrépito e ditatorial de Cuba chegou ao paroxismo na era Lula. Em meio a troca de afagos com o ditador cubano, em suas várias visitas  à ilha, Lula mostraria total insensibilidade com relação à morte, em uma greve de fome, de Orlando Zapata, a qual ironizou. A repatriação forçada de dois boxeadores cubanos, Guilhermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que vieram participar dos jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, causaram grande escândalo. O governo os deteve e enviou para Cuba em avião venezuelano especialmente cedido por Hugo Chávez. Lula: o capitão do mato de século XXI. (qualquer semelhança com o que acontece no Programa "Mais Médicos" não é mera coincidência).





O Brasil foi o único país, além da Turquia, a  votar contra as sanções ao Irã pelo programa nuclear. No caso de Sakineh Ashtiani, a iraniana condenada a 99 chibatadas e à morte por lapidação, acusada de adultério, Lula limitou-se a dizer que as leis dos países deveriam ser respeitadas. Para Lula, os Direitos Humanos não são universais, mas culturalmente determinados.  É um relativista de conveniência. Prova cabal disso é que Lula sempre manteve absoluto desprezo por todos aqueles que lutam contra as ditaduras que apoia. Para Lula, os comunistas e a maior parte dos petistas, existem ditaduras legítimas.






AMIGO DOS CORONEIS

Em vez de aproveitar a força decorrente da reeleição para compor um governo que combatesse a corrupção e se afastasse de uma base de apoio fisiológica, Lula agiria justamente em sentido contrário, atirando-se nos braços do que havia de mais retrógrado, corrupto e fisiológico na política brasileira. A família Gomes, liderada por Ciro, recebeu um ministério recém criado; Fernando Collor foi recebido com efusivos abraços por Lula em meio a elogios mútuos. E a cota do PMDB saltava de dois para cinco ministérios.

Já dando pistas de sua intenção de controlar a imprensa, designou Franklin Martins para a Secretaria de Comunicação Social. O jornalista tem uma longa carreira política, iniciada no MR-8, e foi um dos participantes do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Não demoraria, de fato, para que se incrementasse uma política governamental, já em curso, de apoio à imprensa chapa-branca, a sites da internet e a blogs de exaltação ao PT.




Aos críticos do lulismo transmutados de adversários em inimigos, reservou-se o epíteto de "imprensa golpista". Lula não tardaria a dizer, do alto de seu pedestal (i)moral, que "ninguém neste país tem mais autoridade moral e ética do que o nosso partido". Para o bom entendedor, disse tudo. Mas medrosa, incapaz e oportunista, a oposição assistia a tudo e nada fazia. De forma nada surpreendente, muitos dos oposicionistas eleitos em 2006 acabariam mudando de partido para, seduzidos pelas benesses oferecidas pelo Planalto, incrementar a base governamental.

AMIGO DE SI PRÓPRIO

Lula era um fenômeno de marketing. E com isso o lulismo monopolizou o cenário político do país. Mas os programas do governo na área econômica não deslanchavam. Foi graças ao bom cenário econômico de um planeta que crescia muito mais que o Brasil que o país pelo menos crescia. Nada como um bom pano de fundo. Entretanto, para conferir algum aspecto de planejamento às atividades do governo lançava-se o PAC - Programa de Aceleração do Crescimento, sob a batuta da desenvolvimentista Dilma Rousseff. Nunca foi pra frente, mas como jogada de marketing deu muito certo.

A classe média foi contemplada, ou melhor: calada. O real, valorizado devido à entrada de grande volume de dólares, além dos investimentos diretos e especulativos atraídos por juros altos, deu origem à chamada "Bolsa Miami", que possibilitou à classe média satisfazer seus apetites consumistas. Anestesiada, passou a ver com melhores olhos o governo. Além disso, a queda do dólar permitiu ampliar as importações e conter internamente eventuais aumentos de preço. Desonerações fiscais pontuais e escolhidas e dedo tornou uma série de produtos mais baratos, estimulando artificial e temporariamente a economia, pois a taxa de investimentos não aumentou. Não importava. Todos ficavam felizes com a festa consumista, e Lula e seus aliados mais ainda.



AMIGO DE CORRUPTOS

Novos escândalos e operações da Polícia Federal não causaram nenhuma comoção maior. Normal. Venda de sentenças, pagamento de propinas a congressistas, máfia dos caça-níqueis e Vavá, irmão de Lula; Mendes Junior pagando pensão para Renan Calheiros. Normal. A Polícia Federal investigando tudo, conforme Lula Mandava para se sair bem na foto. Mas nada acontecia. Ninguém era preso. Normal.

A partidarização da máquina estatal avançava. Agora era a vez das agência reguladoras. a ANAC, sob cuja tutela estavam os péssimos aeroportos, era criticada por todos, menos pela ministra do Turismo, a sexóloga Marta Suplicy, que encontrou a solução para o problema: "relaxa e goza, que você esquece todos os problemas depois".




A excitação lulista atingiu tamanhas proporções que logo se aventaria a possibilidade de um terceiro mandato para o presidente. No melhor estilo chavista, apareceu quem defendesse um plebiscito nacional para decidir a questão. O deputado Devanir Ribeiro, do PT de São Paulo, achava natural transferir uma prerrogativa do Congresso para o Executivo. Achava ainda que o Presidente poderia fazer consultas plebiscitárias para decidir um sem-número de questões de interesse do partido. Felizmente a ideia não vingou, mas não impediu que o Itamaraty, em um acesso de magalomania que fugia à sua longa tradição, desse refúgio em sua embaixada em Tegucigalpa ao presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, que tantara organizar um plebiscito inconstitucional para garantir novo mandato. O Itamaraty, nesse enorme vexame, supunha que afrontava o "imperialismo americano" quando na verdade servia de marionete aos interesses de Hugo Chávez.




MEGALOMANIA LULISTA

O Itamaraty tinha algumas razões para seguir os ditames de Lula. Ao longo de seus dois governos, 68 novas embaixadas e consulados foram criados, alguns em locais onde os interesses comerciais do Brasil são, e continuarão a ser, desprezíveis. Mas quando a Petrobrás anunciou a descoberta do maior campo de Petróleo no país, os lulistas ficaram em estado de graça. O campo de Tupi (que mais tarde seria renomeado Lula para homenagear o presidente), serviu bem à propaganda oficial. O Brasil passaria a ser um grande exportador de petróleo, e o Brasil não demoraria a compor o grupo todo poderoso dos países exportadores de petróleo (OPEP). A máquina da propaganda petista só parecia esquecer-se de que o petróleo está a sete quilômetros de profundidade e a trezentos quilômetros da costa. Sua exploração comercial atrela-se a uma série de condicinantes técnicos e econômicos. Até hoje o país continua a importar gasolina e outros derivados do petróleo. Megalomania típica, mas com efeito prático: tratava-se de um ótimo instrumento de diversionismo político.




Enquanto isso, Edson Lobão, do grupo de Sarney, e que nunca havia visto um barril de petróleo, foi nomeado ministro das Minas e Energia. Era uma estratégia para amarrar as raposas com vistas às eleições presidenciais de 2010. Como sempre, Lula pensava mais no projeto de poder do PT - e o seu, destacadamente - do que na administração pública.

O trem bala, daquelas ideias que são ótimas quando implementadas com risco e dinheiro privado, e não público, passou a ser a menina dos olhos de Lula, que disse: "Se a gente olhar, no mundo, todas as grandes coisas, foram por gestos de ousadia, de coragem de gente que não teve o medo de enfrentar o debate. Até a Torre Eiffel, que hoje é admirada por todo o mundo, deve ter tido umas 5 mil ações populares." Conferindo à ministra Dilma a "maternidade" da ideia, Lula violava a lei eleitoral. Mas não se importava. O presidente tinha absoluta certeza da leniência da justiça. E, se condenado, não se importaria em macular-se. Contando com a "vaquinha" dos amigos, pagaria a multa, 

Mais escândalos: cartões corporativos, fraudes no programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte, com desvios de recursos para políticos do PCdoB; operação Satiagraha, com afastamento da cúpula da Abin e consequente CPI dos grampos; dinheiro na cueca. Todas com parcos resultados concretos. E a incompreensível recusa de Lula em extraditar o terrorista italiano Cesare Battisti, envolvido em quatro assassinatos, somente deu sequência ao besteirol tupiniquim lulista.




PODER A QUALQUER PREÇO

Antes que seus adversários pudessem fazer o mesmo, impedidos pela legislação eleitoral, Lula lançou a candidatura de Dilma Rousseff à presidência da República. A ministra o seguia em todos os eventos públicos, posando de mãe do PAC, ou melhor, de uma mãe durona, séria, firme e eficiente. Ou ainda melhor, de uma governanta búlgara que iria colocar seus filhos brasileiros, e seus abusadores corruptos, em seu devido lugar, sempre preocupada com o bem-estar dos pobres. Seus marqueteiros eram profissionais.

Embora fosse apresentada como Doutora Dilma, nunca fez doutorado algum, e muito menos mestrado. Depois de ver seu negócio de mercadorias de R$1,99  em Porto Alegre fracassar, compareceu a uma certa reunião munida de um laptop e uma série de dados, o que impressionou Lula. Virou ministra de Minas e Energia e quase nada fez em sua pasta. Não dá pra deixar de especular que a figura anódina de Dilma caiu como uma luva para Lula.



O projeto de poder do PT era de longo prazo, e Dilma inseria-se nesse contexto. A esfera econômica subordinava-se ao projeto político mais amplo, de modo que a falta de planejamento se constituía em problema crônico dos governos do PT. A política econômica trabalhava com o curto prazo, aproveitando os bons resultados das exportações e da entrada de capitais estrangeiros. Mas era cega para o longo prazo, ou seja, não se preocupava com a implementação das condições necessárias para o investimento e o estímulo à poupança, fatores decisivos para o crescimento continuado e autossustentável da economia. Não causaram surpresa, portanto, os repetidos anúncios de medidas de estímulo ao consumo, que satisfaziam o eleitorado apenas no curto e médio prazos. O salto de desenvolvimento não se efetuou, e o Brasil continuamente cresceu menos do que os demais países do bloco emergente. Ao mesmo tempo, as deficiências estruturais do país ficaram expostas, constituindo-se em notório entrave ao crescimento econômico.

Mas Lula deu um jeito de enquadrar alguns responsáveis pelos entraves ao crescimento econômico: o seu bode expiatório eram os ambientalistas, que o presidente sempre procurou menosprezar, chamando de ecochatos. Ficou célebre a galhofa da perereca, em que o Lula ridicularizou os estudos de impacto ambiental. Não é à toa que Marina Silva teve que pedir demissão do governo e desligar-se do PT, após quase trinta anos de militância.

A adulação do grande capital prosseguia.  Lula, desde sempre mas cada vez mais, fortaleceu a chamada "tríplice aliança", tripé formado por empresas estatais, nacionais e estrangeiras. O BNDES transformou-se numa grande agência de transferência de recursos públicos para essas empresas, uma espécie de benfeitor do grande capital às expensas do interesse público. Negócios milionários, e às vezes bilionários eram fechados, enriquecendo muita gente - como o banqueiro Daniel Dantas. Enquanto a agropecuária e o setor de serviços sustentavam a economia, a desindustrialização do país seguia a passos largos e o crescimento econômico definhava. A tendência neocolonial de crescimento da parcela de commodities na pauta de exportações ganhava corpo. Com a crise econômica mundial de 2008, o cenário piorou e  o desarranjo econômico acabou sendo maior do que a mera "marola" propagandeada por Lula.




Como as poucas obras do PAC andassem a passos lentos, Lula descobriu novo bode expiatório: o Tribunal de Contas da União (TCU), que, após fiscalizar as obras em andamento, recomendara a paralisação de quinze delas. Irritado, Lula propôs a criação de outra instância, de nível superior e "tecnicamente inatacável", capaz de superar eventuais impasses criados pelo tribunal. Magalomania autoritária. O problema do PAC não era o TCU. Era a sua gestão, nas mãos incompetentes da chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

O APARELHAMENTO DO ESTADO

Para ganhar a eleição e continuar no poder, o PT precisava de recursos. Dinheiro precisava ser distribuído às bases, aos compadres. O aparelhamento do Estado prosseguia a passos firmes e o tráfico de influência acentuou-se.

Os grupos de pressão, sobretudo os líderes dos "movimentos populares", continuaram sendo agraciados com benesses do Estado. Tudo sob a onipresente sombra de Lula. Sobretudo o MST, que usava - e usa - a bandeira da reforma agrária como mero instrumento para obter recursos do Estado e sustentar apoio político, e sempre funcionou como partido político, canalizando milhões de votos.

O Estado e toda a sua máquina passaram a servir os interesses de Lula. Não só pelos seus 23 mil cargos de nomeação direta. Fez mais. Transformou as empresas e bancos estatais, e seus poderosos fundos de pensão, em instrumentos para o PT e toda sua ampla clientela. Estabeleceu uma rede de controle e privilégios nunca antes vista na nossa história. Foram distribuídos milhões de reais para sindicatos, associações, ONGs, intelectuais, jornalistas chapa-branca, criando assim uma rede de proteção de desmandos do governo: são os tonton-macoute do lulopetismo, sempre prontos para a ação.




Novos escândalos: nepotismo no Senado, escândalo dos "atos secretos".  Sarney nada fez e ainda teve, contra si, onze denúncias que apontavam, entre outras faltas, casos de sonegação fiscal, a utilização privada de funcionários da Casa e a nomeação de afilhados por meio de atos secretos. Mas o batalhão de choque do Senado, liderado por Renan Calheiros e com o apoio de Fernando Collor, convenceu o presidente da Comissão de Ética do Senado, Paulo Duque (PMDB-RJ), suplente de Sérgio Cabral, a arquivar os pedidos de abertura de processo. Aloísio Mercadante, supostamente indignado, discursou: " Eu subo hoje à tribuna para apresentar a minha renúncia à liderança do PT em caráter irrevogável."





Bastou um telefonema de Lula para fazê-lo mudar de ideia. Normal. O controle de Lula sobre o PT, mais uma vez, era demonstrado. Impusera sua vontade e sequer se preocupava em ferir susceptibilidades. O partido nada mais era do que o instrumento de sua vontade. Como sempre, ética, moral e caráter se mostravam irrelevantes para Lula e seus aliados. O que lhes importava era manter, a qualquer preço, o PT no governo.

O III Programa Nacional de Direitos Humanos, com 73 páginas, era um verdadeiro documento marxista-leninista-autoritário. Entre seus pontos, todos eles polêmicos, estava a "instituição de critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de direitos humanos". Era uma forma velada de censura, inconcebível em uma democracia. Antes de cair no esquecimento o Programa serviu para mostrar a veia autoritária do PT, além de mobilizar petistas e setores próximos para a  campanha eleitoral que se avizinhava.




Às vésperas das eleições, as pesquisas não muito satisfatórias levaram o PT a "repaginar" Dilma. A radical operação plástica operada antes não teria sido suficiente.  O ar sisudo se transformou, da noite para o dia, em simpatia. Começava a sorrir nas cerimônias públicas - e por qualquer razão. Desenterraria a mineirice até na fala, alterando o tom de voz e a postura, procurando compensar a notória limitação na oratória. Virou verde, defendendo o meio ambiente em todas as suas falas. Era o autêntico figurino "Dilma Paz e amor" imposto pelo publicitário João Santana.




Na homologação oficial da candidatura de Dilma, a futura presidente citou Lula trinta vezes. A cada uma delas o público urrava: "Lula tá com ela, eu também tô". Lula, um exemplo para todos. O mesmo que tentou coagir o ministro do STF, Gilmar Mendes, a adiar o julgamento do mensalão para depois das eleições. Uma ação antirrepublicana que bastaria para afastar para sempre da vida pública qualquer político de um país sério. Mas, não esqueçamos, estamos no Brasil.

A eleição de Dilma, em outubro de 2010, não causou portanto surpresa alguma.

A ERA DILMA

No discurso de posse de Dilma, Lula estava inebriado com a (sua) vitória. Afirmou que  a solução para o problema econômico, no Brasil, não fora dada por "nenhum doutor, nenhum americano e nenhum inglês, mas por um torneiro mecânico pernambucano". Dilma, por sua vez, leu o discurso preparado por seus assessores.  Usou imagens gastas, pobres e de gosto duvidoso. Como uma mãe patética, chamou os cidadãos de "queridos e queridas". Acrescentou que "a aparente suavidade da seda verde-amarela da faixa presidencial" não escondia "a força e o exemplo da mulher brasileira". Prometeu ser rígida contra e corrupção e foi aplaudida por José Dirceu. Não bastasse a semelhança com Cristo, Lula virou o Moisés brasileiro, que levou o povo brasileiro à outra margem da história.



Seu programa de governo foi apresentado com a energia de um burocrata do socialismo real. Ao final do discurso, palmas protocolares foram ouvidas. A adesão da plateia, no parlatório do Planalto, foi ao estilo da antiga Alemanha Oriental. Na base aérea, como numa república de bananas, ouviu uma banda militar tocar o hino do Corinthians. A festa de recepção organizada no ABC paulista tinha Sarney como convidado de honra. Ele, que durante as célebres greves dos metalúrgicos, como fiel escudeiro da ditadura militar, havia apoiado todas as medidas repressivas. Os políticos têm memória curta e seletiva, de acordo com as suas conveniências.

De cara as 37 pastas ministeriais foram loteadas entre os partidos da coalizão que havia apoiado Dilma: PT, PSB, PP, PR, PDT e PCdoB. O PT elegeu uma grande bancada no Congresso Nacional.

Com a copa do mundo e Olimpíadas à vista e com a necessidade de gastar dinheiro com a infraestrutura necessária para os jogos,  Dilma lançou uma Medida Provisória, aprovada pela Câmara dos Deputados, que permitia ao governo federal manter em segredo orçamentos feitos pela União, estados e municípios com vista às obras. Era um escândalo. Nem as ditaduras que o Brasil teve no século XX ousaram proibir a divulgação de gastos públicos. Dada a repercussão negativa, o governo viu-se obrigado a voltar atrás. Mas, enquanto os estádios eram erguidos formalmente como PPPs (parcerias público-privadas) o dinheiro público bancava mais de 60% dos obras, em alguns casos alcançando 80%. Dispensadas de licitações, sabemos no que deram as PPPs: o valor de algumas obras chegou a quintuplicar.




O uso político do BNDES prosseguiu, favorecendo grande grupos empresariais. Vários ministros, recém nomeados, caíram sob o peso de denúncias de corrupção que lhes pesavam sobre as costas. Dilma não sabia de nada, e ainda posava de faxineira. Desprovida de carisma,  a "presidenta", como seu mau gosto eleitoreiro exige que seja chamada, adotava uma postura de raiva que lhe confere o aspecto de uma mãe preocupada com seus filhos. Em um país com baixíssima consciência política, a imagem era perfeita.

E os escândalos continuaram: Conab, que empregou filhos e outros parentes de senadores e deputados, Carlinhos Cachoeira, operação Porto Seguro. O cenário econômico mostrou sinais de fadiga. O crescimento, baseado no consumo, resultou em famílias endividadas. Enquanto sobem as despesas de custeio, as taxas de poupança e investimento são insuficientes. Voltamos ao padrão de crescimento "voo de galinha". E, para piorar, ingerências na Petrobrás e em companhias de energia levam a resultados desastrosos, deixando evidente seu populismo eleitoreiro.

A popularidade da presidente continua alta. Como explicar? Ações eleitoreiras, a eficiente propaganda governamental, o uso da máquina pública e a consolidação alianças espúrias (Lula tirou fotos com o inusitado apoiador de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo, Paulo Maluf, que declarou sem constrangimento para nenhum dos dois: " Não tem mais no mundo esquerda e nem direita. O que tem hoje é éfficacité"). Mas medidas de cooptação de segmentos inteiros da sociedade e, sobretudo, a inexistência de uma eficaz ação oposicionista tiveram significado relevante.




Inaugurava-se a era Dilma, com o típico estilo de adotar medidas imediatistas, dourar o futuro e transformar a gestão do país em uma aventura fadada ao fracasso.

O que nos espera, nós sabemos. A era Lula, infelizmente, não acabou.

CONCLUSÃO

Lula é frutos de seus eleitores. Nada seria sem eles. Sua irreverência sarcástica, seu desprezo pelas leis e pela ética, seu pragmatismo imediatista e sua ojeriza  pela classe média informada são compartilhados, inteiramente ou em parte, por uma grande parte da população brasileira, seus eleitores incondicionais, mas principalmente os militantes.







Lula, tratando-se de pobre operário fabril que nunca foi,  fez-se de bom selvagem, figura que sempre atraiu a simpatia dos brasileiros, cuja consciência política é notoriamente baixa. Um doutor nunca faria melhor. Atraiu, sobretudo, a intelectualidade tupiniquim, sempre ávida por expiar seu sentimento de culpa latente, não resolvido, e transferi-lo para uma "elite atrasada e reacionária".  Os mais pobres, como sempre, são usados como massa de manobra.

O PT soube construir um mito fundador, em 1980, enquanto desconstruía o passado da esquerda mundial e brasileira, eivada de horrores e de gestos autoritários. Um novo tempo começava com o partido da estrela. Lula logo assumi o papel de liderança suprema do partido, eliminando as lideranças que não aceitassem papel subalterno a ele. Ao dissidente era reservado o opróbrio eterno. Mas Lula sempre desprezou o debate mais aprofundado de ideias. Sabia que nesse terreno seria sempre derrotado. Construiu-se um culto à sua personalidade que continua em nossos dias. Seus defeitos são sistematicamente transformados em qualidades. Para manter-se vivo politicamente, abusou da propaganda partidária e da aliança com "picaretas" do Congresso.

O Bolsa família caiu como uma luva, soldando o novo tipo de coronelismo petista. Se as 14 milhões de famílias do programa identificaram em Lula a razão do recebimento do benefício, sabem que, para serem cadastradas e mantidas no Bolsa Família, dependem do chefe local. E os governichos criminosos permanecem dominando milhões de pré-cidadãos.

Nos fóruns internacionais, o país se transformou em aliado preferencial das ditaduras e adversário contumaz dos Estados Unidos. Enquanto o eixo dinâmico do capitalismo foi se transferindo para a região Ásia-Pacífico, o Brasil aprofundou ainda mais a sua relação com o Mercosul. Em vez de  buscar novas parcerias, optamos por transformar os governos bolivarianos em aliados incondicionais.

Entre os artistas , a dependência estatal foi se ampliando. Uma simples peça de teatro, um filme, um show musical, nada mais é realizado sem que tenha a participação do Estado, direta ou indiretamente. Ter boas relações com o lulismo virou  condição indispensável para a obtenção de "apoio cultural".

O movimento sindical foi apresado pelo governo. Novos pelegos controlam com mão de ferro "seus" sindicatos.

Não será fácil retirar o PT do poder. Foi criado um sólido bloco de sustentação que - enquanto a economia permitir -  satisfaz o topo e a base da pirâmide. Na base, com os programas assistencialistas que petrificam a miséria mas garantem apoio político e algum tipo de satisfação econômica aos que vivem na pobreza. No topo, atendendo ao grande capital com uma política de cofres abertos, em que tudo pode, bastando ser amigo do rei.

2002-2010 foi uma década perdida para o país. Perdemos um momento único na história recente do capitalismo. A bonança chinesa, a mudança do eixo dinâmico capitalista da economia atlântica para a região Ásia-Pacífico, a alta das commodities,  a ascensão dos países emergentes, a eficiência de padrão internacional de vários setores da economia nacional - tudo conspirou a favor para que déssemos um grande salto e enfrentássemos desafios em outro patamar. Mas o PT não tinha e não tem projeto para o país. O que tinha e tem é um mero projeto de poder, de tomar o Estado e transformá-lo numa correia de transmissão para seus interesses partidários.

E conseguiu. Até quando, depende de nós.