Por Pedro Lobo Martins
Pobre é a sociedade em que a
expressão do vício e a execração da virtude são confundidos com a própria virtude.
Em que o escrupuloso se confunde com o criminoso e o inescrupuloso é transformado
em santo. Pobre é a sociedade em que as reputações se baseiam nas aparências e as
aparências resumem-se a fáceis e convenientes locuções verbais. Pobres de nós,
que, ao perdermos controle do reconhecimento público de nossas ações, perdemos também
as nossas reputações e a nossa humanidade.
Enquanto vivíamos nas aldeias
primordiais, conhecíamos bem os nossos vizinhos. Eram todos nossos parentes,
nossos amigos ou nossos inimigos.
Conhecíamos o nome, a personalidade e o caráter de cada um deles. Eram apenas
uns cento e cinquenta. Não havia como uma pessoa fugir de seu histórico, baseado em suas ações. Pequenos desvios voluntários de conduta podiam ser admitidos, pois mesmo o perdão e a tolerância fundamentam-se na reputação. Durante séculos foi vital manter uma boa reputação.
Com a urbanização as
pessoas deixaram de conviver e de se conhecer. Nas cidades, históricos pessoais
são ficções cujos principais atores são as intrigas e as fofocas. Vivemos a era da falta de reputações, ou melhor, das falsas reputações,
em que o fio da barba foi substituído pelo contrato não honrado e em que os valores
e virtudes consagrados cederam lugar ao relativismo, que coloca o eterno
revisionismo como valor em si próprio. E os revisores somos cada um de nós. Somos
deuses sem reputação, ou melhor: julgamo-nos deuses e conferimos a nós mesmos a reputação
que bem desejarmos, pois ninguém se importa.
Talvez por isso as belas palavras
tenham substituído as belas ações. É mais fácil falar bem do que agir bem. É mais imediato falar bem do que esperar o resultado das nossa ações. E ainda talvez por isso o homem moderno seja tão incapaz de desculpar-se com os outros
e consigo próprio. A mea culpa está em
extinção. Quem pode dizer que uma pessoa está errada quando o erro é tão
relativo? Quando respeitamos as leis é por medo da punição e não por
deferência ao que é certo. O certo não é tão relativo? Não ensinamos mais aos nossos filhos o que é
justo, pois mesmo a justiça, essa grande e fugidia virtude, não é tão relativa? A única reputação que procuramos manter é a de que somos cheios de certezas.
A democracia moderna, nascida das
guilhotinas da Revolução Francesa, pode-nos parecer a principal culpada pelo
relativismo moral. Não foi ela que deu todo o poder ao povo, a cada um de nós? Todos
podemos opinar e votar de acordo com nossos valores relativos, nossos conceitos relativos e nossas certezas relativas. Mas, e aí está a virtude da democracia,
espera-se que a mediana seja melhor do que os extremos. Um canalha não pode, com
seu voto, mudar o mundo para pior. As pessoas de bem, que são aquelas que,
apesar de tudo, ainda se preocupam com a sua reputação (ainda que em foro
íntimo), não deixarão. Tomara.
Platão considerou a possibilidade
de um homem sem qualquer reputação. Em sua Republica,
traz-nos a alegoria do Anel de Giges, que, tornando o seu possuidor invisível, isenta-o de qualquer preocupação com o que os
outros pensam ou deixam de pensar dele, ou com qualquer consequência de seus
atos, no presente ou no futuro. Uma proposta nada desagradável ao homem
moderno. Mas Platão chegou à conclusão de que o homem invisível seria um ser individualista, preocupado apenas em saciar suas vontades mais vãs e suas ambições mais materialistas, sem
qualquer compromisso com a justiça. Um retrato nada distante do homem moderno.
Não somos todos um pouco
invisíveis nas ruas de nossas cidades, ainda que não procuremos esconder nossos
rostos atrás das máscaras do anonimato? A invisibilidade
nos dá o poder (ou a maldição) do anel de Giges, e não o contrário, mas em compensação nos
confronta com a injustiça, e ainda: nos dá o poder de escolher o que nos
parece ser justo. Assim é com a democracia. Cada um de nós é apenas uma voz
invisível no meio da multidão. Mas temos uma voz, que pode ser usada para o bem
ou para o mal. Por isso nenhuma voz deve ser censurada, pois a vorberreia dos canalhas
se perderá no meio da multidão.
Mas pior e mais perigoso do que o homem
invisível é o governo invisível. Quando o Anel de Giges cai nas mãos dos
poderosos, o estrago costuma ser muito maior. Na política, transferimos o poder
a outros na esperança de que façam o que é justo. A justiça e a liberdade são
o que a sociedade recebe quando cada um de nós dá em troca uma parte de sua própria liberdade. Se a alegoria de Platão estiver correta, então é bom
ficarmos atentos com os governos autoritários e com aqueles que os apoiam. O
autoritarismo é uma forma de invisibilidade, e a invisibilidade leva, como
concluiu Platão, à injustiça.
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