quinta-feira, 18 de julho de 2013

Manifesto do Nada na Terra do Nunca



Resenha por Pedro Lobo Martins 

Lobão mostra a sua verve em seu Manifesto. Mostra a que veio e a que fica. Os brasileiros somos pequenos perante o mundo e queremos continuar assim. Não queremos crescer. Seres macunaímicos, temos a preguiça da província e todo o orgulho do mundo. Este é o seu manifesto aos "bundas-moles" do país. Que não valerá nada nesta terra de ouvidos moucos, nesta terra do autoengano, que se valoriza por seus piores defeitos, pelo seu primitivismo, pela sua precariedade e por seu nacionalismo chauvinista. Nesta terra de carolas estatizados, filhos de um marxismo guarani-Kaiowá de boutique. Nesta terra que construiu sua identidade  sobre a pobreza de um passado idealizado e não sobre a riqueza do futuro. Nesta terra de intelectuais e pseudo-intelectuais que amam a miséria.




Sim, que amam a miséria. A que lhes dá a força e a desculpa para patrulhar. A que lhes faz amar Cuba. Melhor: a que lhes faz querer que Cuba seja aqui. São nacionalistas reativos. E festeiros: quando não conseguem ler as notas de rodapé de O Capital, interrompem sua preguiça para pular carnaval. Que se manifestam, aliás, pulando carnaval. É que o pobre é o único produtor de cultura do Brasil. A cultura emana das favelas e do jogo do bicho, claro. E, assim, a classe média politicamente correta inicia sua "marcha a ré em direção à laje da Barbie, à MPB de segunda, ao pagode de terceira, ao forró de quarta, ao sertanejo de última". É sempre a mesma festa. Menos pros músicos patrulhados pela KGB da MPB. Este é o Lobão.

E viva a Terra do Nunca! A terra dos nacionalistas xenófobos, dos bichos-grilos ecológicos, dos ripongas neocomunistas e das ONGs de fachada. Todos a jactar-se, do alto de seu pedestal moral, de seu carnaval cultural. Mortos de medo, sempre, de serem comparados com o mundo civilizado e desmascarados diante da sua mediocridade, soberba, inoperância e impotência. E viva o pastiche brasílico: a grife "universitário", a Comissão da Verdade, Caetano e Gil. E Chico Buarque. A meia-entrada falsificada. E a meia-entrada de verdade. E viva o Roquenrrol!

Por falar em roquenrrol... a macunaimice musical deste país se traveste de garotos amestrados de sorriso infantil e idiota, mas não só disso: transparece na malgravação dos  nossos discos, na tecnofobia atávica da nossa alma, na falta de potência, timbre e arrojo da nossa produção. "Estamos no Brasil", mas era pra ser assim? Não, mas vai continuar sendo assim na terra da lei de proteção do artista nacional, da lei Rouanet e da lei de Gerson. Quem não quer mamar nas tetas do Estado? Só o Lobão. O Lobão que espera, sem esperar, o dia em que nos livraremos deste nosso nacionalismo malandro-agúlhico e da nossa síndrome de capacho de rendez-vous tupiniquínica para podermos escrever páginas mais gloriosas da nossa história.

Lobão, o reacionário. Este é definitivamente o Lobão. O Lobão branco-negro-índio macunaímico que não quer mais ser Macunaíma. Que sabe virar garimpeiro nos confins da Amazônia e que fica amigo do viralata da rua e do pato que acabou na panela. O Lobão também é bonzinho, ou quer parecer uma alma boa a seus leitores antes e depois de acionar a metralha. Mas ainda assim é posto para correr pelos rappers por ser roqueiro e por ter cara de branco. O Lobão, que é um filho da puta por não ser do time deles. O que denuncia o governo que prega o distanciamento entre as pessoas, o ódio às elites, ao lucro, ao patrão, ao heterossexual e ao religioso em geral.  Que acusa o governo macunaímico que divide  as pessoas, que adora a miséria e que vive da miséria.

Lobão, a besta enquadrada. Sim, Lobão foi enquadrado. Chegou a ir com a maré. Acreditou na propaganda. Era um imbecil na sua juventude, confessa. Acreditava que a esquerda funcionava e que Mao era um heroi. Achava mesmo que Fidel e Che eram uns caras legais. Fez comícios para o PT, para Eduardo Suplicy, este sim um cara legal de verdade. Conversou com Lula e Zé Dirceu. Estes achou esquisitos: seria um lampejo de razão? Parece que sim, pois logo percebeu tratar-se de uns sectários que queriam implantar o comunismo no Brasil. E locupletar-se. Não debandou logo para o lado dos outros, pois os outros, no Brasil, eram um bando de coronéis amorfos auxiliados por psicopatas torturadores. Alías, o coronelismo não acabou, entranhou-se na nossa alma e nos partidos políticos brasileiros. Pena. Foi só há poucos anos que percebeu que deveria parar de apoiar quem fazia ode à precariedade, ao mau-caratismo, à paralisia e ao "joão sem bracismo" macunaímicos.

Já deu pra perceber que Lobão tem um pé quilômetros atrás com Macunaíma. E com seu criador, Mário de Andrade. E com o outro Andrade, o Oswald. Um homem gentil e bem-intencionado que ajudou a dar alma ao demônio: o ser mais incapaz e o menos gabaritado, elevado de forma triunfal à condição de ente divino pela sua absoluta falta de condição de competir com outras culturas, por sua displicente ausência de mérito. Para Lobão, o Manifesto Antropofágico de 1928 tornou-se, para a sua e para a nossa infelicidade, a pedra fundamental do nosso pensamento e da nossa estética. Todos nós, a partir daí, tornamo-nos Macunaíma: Macunaíma somos todos nós.

Lobão não perdoa o modernismo. Seus conceitos estão "incrustados no nosso imaginário coletivo, no nosso caráter, na nossa cultura, na nossa vida, sem a menor resistência, sem o menor constrangimento, sem sequer o mínimo questionamento, quando não com um absoluto e incondicional fervor religioso por esse acontecimento que marca nossa história e nossa psique de forma indelével". Seus motes têm " o nacionalismo como roteiro, a precariedade como bandeira, a preguiça como virtude, a ausência de caráter como esperteza, as frases evasivas como estilo e a antropofagia como vingança caraíba da Pátria em relação ao mundo civilizado e também como desculpa para se permitir copiar as ideias de outras culturas e sair por cima, cozinhando um inimigo comestível como álibi": Antropofagia.

Lobão lamenta profundamente o advento do modernismo.  De suas entranhas saíram de tudo que é ruim um pouco, ou muito: a xenofobia que levou à proteção de mercado e ao intervencionismo estatal; a piedade preconceituosa dos imaculados Guaracis, Jacis e Iracemas  contra a vilania cultural do homem branco; o umbigocentrismo excludente;  o culto ao exótico e ao primitivo; a lusofobia que nos leva a querer reinventar a nossa língua; a monomania da festividade histérica e a ditadura da alegria encenada; a mania de troca interessada de favores que redundou na distribuição de bolsas, cotas, vales, cargos de confiança e propinas; a outra mania de achar que devemos responder solidariamente pelos erros dos outros; o universitário médio que lê menos de um livro por ano, em geral de auto-ajuda ou de  doutrinas fajutas da esquerda; a esperteza retrô-chique contra povos cultos e cristianizados. Como um Gregório de Matos, um boca do inferno, um boca de brasa do século XXI, Lobão sabe cuspir fogo: embasbaca-se com "a bundamolice comportamental; a flacidez filosófica e a mediocridade nacionalista" de um povo que almeja, antes de tudo, "ser funcionário público, militante de partido, intelectual subvencionado pelo governo ou celebridade de televisão".



Lobão escreve como uma pessoa de espírito livre. Talvez, ao contrário de tantos de nós, não tenha o telhado de vidro ou o rabo preso. Ou já tenha cumprido suas penitências em seus mais de cinquenta anos a mil. Fala com clareza o que quer e o que pensa. E acerta o alvo quase sempre neste seu novo livro.

Um Manifesto contra tudo em uma terra que, desconfio, nunca o ouvirá.


terça-feira, 9 de julho de 2013

Escravidão Médica





Por Pedro Lobo Martins

Antes de mais nada, sou médico e trabalho exclusivamente para o SUS. Acredito que, dentre as poucas obrigações do Estado estão as de usar o dinheiro dos impostos para pagar pelo fornecimento universal de saúde, educação e segurança, todos entendidos em sua dimensão mais ampla. Pagar pelo fornecimento e não fornecer, observe-se essa importante diferença conceitual. O Estado não fornece nada. As pessoas, sim.

Trabalho no SUS porque acredito estar contribuindo para esse "fornecimento" de saúde. Porque gosto, porque sou pago (ainda que mal) para isso, mas sobretudo porque quero. Não admitiria que fosse por obrigação.

O governo Dilma Rousseff, numa clara demonstração de seu viés fascista, vem com mais essa de obrigar os médicos a trabalhar para o SUS por dois anos, ao fim de sua formação. Com seu jeitão de chefona de gabinete do dirigismo estatal, que engraçada e anacronicamente até combina com seu sobrenome eslavo, atropela as entidades representativas e o próprio Congresso para entabular mais uma Medida Provisória de alcance permanente.




Não adianta maquiar as coisas. O PT pretende nos enganar ao dizer que o trabalho no SUS vai fazer parte da grade curricular, passando a compor o 7º e 8 º anos do Curso, que ora conta com "apenas" 6 anos, para beneficio da formação médica. Para meio entendedor é óbvio que isso é uma armadilha que significa o mesmo que obrigar alguém recém-formado a trabalhar por dois anos para o SUS onde o ministro bem entender e com uma irrecusável bolsa definida pelo próprio dito cujo. Isso mesmo para aqueles oriundos de faculdades particulares!

A reação a esse ato ditatorial tem sido menor do eu que gostaria. Mas não me surpreendo. As coisas caminham mais ou menos assim mesmo nas repúblicas bolivarianas, todas elas seguidoras da cartilha da esquerda fascista: primeiro cria-se um clima propício a mudanças "revolucionárias" (as manifestações das ruas por mais saúde, que não clamavam exatamente por escravidão médica, mas    tudo bem); depois cria-se um ato (ou MP) verticalíssimo que dá uma solução autoritária mas com bons resultados eleitoreiros no curto prazo, no sentido de fazer parecer beneficiar a maioria; então, os "inimigos do povo", que ousam apontar seus dedos para essas execrações, são eles mesmos execrados e os potenciais oponentes, cooptados, ou melhor: forçados a se tornarem "patriotas", um a um; por fim, estão criadas as condições para mais atos autoritários em nome de um "bem da coletividade". Stalin e Hitler ficariam orgulhosos de ver seus métodos aplicados à risca. Ut rota vertitur...






Nossa democracia, sendo ainda jovem, não fez entranhar na cabeça das pessoas seus altos valores. Daí as reações ambíguas a essa monstruosidade petista (ou petralha, como diria o Reinaldo Azevedo). As associações de estudantes e grande parte dos reitores, com suas tradicionais cabeças vermelhas, ou no mínimo cinzentas, ficam feito baratas-tontas sem saber o que dizer. Acabam por não desapontar quem deles espera declarações politicamente corretas: a saúde do povo em primeiro lugar!...

Democracia, deveriam saber, não é o poder emanado da voz da maioria, embora no Brasil nossos políticos e grande parte da população torçam e ajam para as coisas funcionarem assim. Democracia é, antes de tudo, o respeito às liberdades individuais, ainda que estas liberdades sejam clamadas por uma minoria. Os homossexuais devem ter seus direitos garantidos pelo Estado, embora sejam uma minoria. Os heterossexuais também devem ter seus direitos garantidos pelo Estado, mas não por serem maioria. Os direitos individuais não são negociáveis em uma banca de advogados, em um palanque de políticos e nem sequer em uma conversa de boteco. Discutidos, mas não negociados. Não em uma democracia.

Não precisaria dizer que, entre os direitos e garantias individuais mais básicos está o direito de escolha. Embora a liberdade de escolha se transfigure eventualmente em uma ilusão (somos marionetes do destino, diz Sam Harris), quero pelo menos poder escolher (ou perceber que escolhi) a minha esposa, meu carro, onde moro, os livros que leio, a profissão que abraço; e quero que meus conterrâneos brasileiros possam fazer o mesmo, pois se não puderem hoje meus filhos não poderão amanhã. Quero, por isso mesmo, que possam escolher onde vão trabalhar.

Os médicos não existem para servir à coletividade. Todos eles escolheram suas profissões para servir, antes de mais nada, a eles mesmos, com seus anseios e aspirações particulares. Acabam por servir à coletividade como efeito colateral positivo de seu trabalho, quando bem feito. Como servem à coletividade com seu trabalho e esforço o sapateiro que calça o menino e o professor que o educa; a manicure que pinta as unhas da senhora e o Lula, torneiro mecânico que ajudou a fabricar seu automóvel. O sacerdócio na medicina (no sentido de trabalhar sem levar em conta a remuneração auferida), ao contrário do esforço individual, deve ser uma opção, não uma obrigação.






Mas os bolivarianos não percebem isso, que Adam Smith captou há mais de dois séculos: que os efeitos colaterais positivos da miríade de escolhas livremente realizadas por indivíduos livres em um ambiente de livre mercado traduzem-se no bem da coletividade. A supressão, ainda que de apenas alguns desses direitos, por seres supostamente oniscientes postados no aparato dirigente estatal, diminui inexoravelmente a eficiência do sistema.

Querem que os médicos sejam obrigados a trabalhar no SUS, sem direito a escolha. Querem que médicos cubanos, que já não têm mesmo direito algum de escolha, venham trabalhar no SUS. As escolhas mais fáceis costumam ser as escolhas mais burras, e as mais enganadoras. É mais fácil, e de maior apelo populista, lotar os serviços de urgência e emergência com médicos recém-formados (oops, desculpe: ainda não formados) do que atrair para eles os médicos mais capazes e experientes com bons salários e condições de trabalho. Tem muito dinheiro dos nossos impostos por aí para isso. É só tirá-lo de onde ele não deveria ser gasto, a começar pelos estádios de futebol e passando necessariamente pelos subsídios, subvenções, concessões e patrocínios em que o dinheiro público está corrompidamente presente, não nos esquecendo, claro, do Congresso Nacional com seus gastos estapafúrdios, esculhambatórios e ineficazes.

Para terminar, o tiro muito provavelmente vai sair pela culatra: menos gente vai querer, e poder, fazer um curso completo (e mais caro) de medicina em até 11 anos, incluídos 2 ou 3 de residência médica; vão continuar a faltar recursos não-médicos para a saúde, incluindo enfermeiros e técnicos de enfermagem (mas é claro que eles, também, vão cair na roda-viva);  com o aumento do tráfico de escravos, os salários de todos esses profissionais vai cair na exata proporção da qualidade do seu serviço: o descontentamento será geral. Por fim, certamente a distribuição dos profissionais pelo país não será baseada no mérito: estarão abertas as portas para o favorecimento e a corrupção.

Por enquanto é só a escravidão médica. Em alguns meses, quem sabe, haverá futuros engenheiros forçados a trabalhar para o Estado nos rincões da Amazônia, professores obrigados a labutar por um salário ainda pior aonde quer que sejam mandados. Quem sabe os advogados recém-formados não terão que prestar assistência judicial gratuita onde não quiserem? Só os ladrões, dentro e fora das prisões, dentro e fora do governo, não serão obrigados a trabalhar para o Big Brother Orwelliano tupiniquim. Chegará o dia em que todos nós, talvez, sejamos obrigados a doar nosso tempo e nossas posses para o Leviatã insaciável, como bons patriotas que seremos, para o bem da coletividade. 

David Hume dizia que a liberdade não é perdida de uma só vez: seus inimigos procuram minar nossa integridade moral e nosso poder de escolha, tolhendo nossa liberdade pouco a pouco até que não sobre mais nada. Nossa essência e nosso caráter vão-se com ela. Friedrich Hayek, em O Caminho da Servidão, acertou no alvo quando percebeu que, à medida que a liberdade de escolha é tomada aos indivíduos, as liberdades pessoal e política também se perdem.

Já disse isso antes e repito: da ladeira escorregadia da iniquidade institucionalizada não se sai facilmente. Todos nós que acreditamos na democracia de facto tentaremos manter nosso equilíbrio. E, se nos recusarmos a apontar um dedo para os populistas fisiológicos e insensíveis à democracia, logo estes senhores farão com que percamos não só os demais dedos mas todos os nossos anéis e pior: a nossa liberdade.















sexta-feira, 21 de junho de 2013

Tempus Fugit, ou De Olhos bem Abertos




Por Pedro Lobo Martins

As manifestações agradam-me aos olhos e aos ouvidos (à parte os vândalos, é claro). É que tem gente de todas as cores nas ruas, ainda que muitos não saibam, e nem queiram, definir-se ideologicamente. Tem gente da esquerda e da direita. Isso traz uma grande riqueza às discussões que, agora e no futuro próximo, vão procurar explicar o que está acontecendo.

Muitos jovens de classe média, que não conheceram as sangrentas lutas ideológicas das décadas de 60 e 70, e que, portanto, nunca precisaram escolher um lado (militantes versus militares, como era obrigatório até pouco tempo), agora dizem com todas as letras de seus cartazes que nem um nem outro daqueles lados os representam. Vão às ruas sem bandeiras. Vão às ruas com seus brados fortes e retumbantes dizer que a era do maniqueísmo das cores acabou e que uma rosa não representa, necessariamente, o bom e o belo.





Daí, talvez, sua intolerância pelas bandeiras, ainda que vermelhas. Vermelhas? Sim, a antiga cor da juventude, das marchas de braços dados ou não em que se caminhava e cantava e se seguia a canção. Aquele disco arranhou, a canção ficou fora de moda. A geração '68 cumpriu seu papel, mas os tempos agora são outros, aquelas águas passaram. O maniqueísmo ideológico deu lugar a um arco-íris de ideias que não brilham mais apenas em tons de vermelho ou de azul. Foi o que o Movimento Passe-Livre, o PSOL, o PSTU, o PCR e outros anacrônicos partidos "de bandeira" aprenderam a duras penas nas ruas.  Não foi a Globo, a Veja ou qualquer outro veículo da grande mídia "reacionária" que levou essa nova leva de pessoas às ruas. Foram as pessoas mesmas, com seus próprios pés no chão, cartazes na mão, um grito na garganta e muitas ideias na cabeça.





Talvez o PT não tenha percebido tudo isso. Lula e Dilma não perceberam isso. Poucos políticos perceberam isso. O cavalo selado passou e passou e passou nesses 10 anos e ninguém pensou em montá-lo para promover a Reforma Política!

É o que leva a nova geração às ruas e, no fundo, a faz bradar.







segunda-feira, 17 de junho de 2013

Pão e Circo




Por Pedro Lobo Martins

Esta história toda de protestos tem sido ótima. Ótima porque pessoas adormecidas têm acordado. Mas alguns aspectos do que tenho lido e assistido têm me incomodado:

1- Onde estão as pessoas das classes D e E? Parece que só os setores politicamente organizados/ intelectualizados, sobretudo da extrema-esquerda, inicialmente (PCO, PC do B e PSOL) e, mais recentemente, uma parte menos alienada da classe média, vão para as ruas. Isso mostra, talvez, que enquanto houver pão e circo, digo, bolsa-família e futebol, carnaval, novela e afins, o cidadão comum vai  continuar "feliz" e não vai sair da sua zona de conforto.

2- Tanto a esquerda quanto a direita querem se apropriar do movimento.
A esquerda fica indignada porque começou tudo e estarrecida por não ver o povão nas ruas. Mas tem que ver a "elite" nas mesmas ruas e no facebook, essa elite que, tendo a barriga cheia, os bolsos recheados e o cérebro cultivado, não teria o direito de reclamar de nada (???). A direita, por sua vez,  quer capitalizar a questão, sobretudo depois da desconcertante vaia ouvida pela presidente, para seu projeto de oposição. Mas a verdade é que o movimento se configura agora como uma clássica gota d´água em que as ideologias se misturam e se confundem, tomando as feições de um basta à corrupção geral em todos os setores, à impunidade e aos gastos enormes para as copas das Confederações e do Mundo.

3- Nessa miscelânia de diferentes indignações, ideológicas e sem ideologia, da esquerda e da direita, o resumo geral de intenções parece recair, infelizmente,  sobre o governo: as pessoas querem mais governo. O problema é que é exatamente o governo a fonte das mazelas que nos afligem, desde a ineficiência do transporte público até a falta de saúde e educação da população, com toda a corrupção que vem a reboque. O que falta não é mais governo: falta (muito) menos governo.

Estamos todos certíssimos em reclamarmos dos gastos altíssimos com estádios de futebol e com a infra-estrutura específica que pouco tem a ver com as reais demandas da população. Os turistas não são mais importantes do que nós e nossos filhos. Nem os empreiteiros amigos dos políticos (vide meu post anterior sobre Clésio Andrade). O bom turista percebe muito bem o que é mera maquiagem e o que é feito para ficar. Nós mais ainda. E o que se faz para ficar é saúde, educação e segurança.


??????


Não está na hora de pedirmos tarifa-zero. Enquanto houver governo na conversa as tarifas serão altas e pagas pelo contribuinte, ainda que os ônibus sejam de graça. Enquanto houver governo, seus amigos, que incluem os concessionários, ganharão às custas de (mais) taxas e (mais) impostos pagos pela população. Está na hora de pedirmos, nas ruas e nas redes sociais, que o governo faça aquilo que é sua função precípua: escolas-dez, uma rede de assistência à saúde-dez, um sistema jurídico ordenado e eficiente e uma polícia-dez capaz de proteger a população, e não de espancá-la. Isso é pra ficar. Do resto, boas leis, um Estado de Direito e a livre concorrência dão conta.

não seja este cara!


Pra começar, é preciso querermos e exigirmos.



terça-feira, 5 de março de 2013

A Ladeira Escorregadia da Iniquidade


Por Pedro Lobo Martins
O senador Clésio Andrade (PMDB), notório representante mineiro do poderoso setor de transportes, está brincando com a nossa inteligência. Ou talvez não se importe com ela, mas apenas com o setor que financia suas campanhas milionárias. Campanhas que contaram com a mãozinha de Duda Mendonça, que afagou a cabeça de  galos antes das rinhas de que participava e que se sujou com o dinheiro asqueroso do mensalão. O caso que vou aqui contar, publicado no site do próprio senador, não poderia ser mais digno deste senhor.

Acontece que o setor de transportes está sofrendo com a falta de motoristas. Segundo  certas estimativas, faltariam entre 40 e 120 mil profissionais. A Associação Nacional de Transportes de Cargas estima que hoje, nas principais empresas, 1 em cada 10 caminhões esteja parado por falta de motoristas.

Estejam corretos ou não esses números, os principais analistas da área já propuseram medidas sensatas para sanar este descompasso entre o (pequeno) número de trabalhadores preparados e o (grande) movimento nas transportadoras.  É fato que não só o volume de carga transportada vem aumentando como cresce também a complexidade e o tamanho  dos caminhões e carretas, que agora têm computadores de bordo, sistemas de rastreamento e telemetria, entre outras parafernálias. Todas as medidas propostas passam pelo treinamento dos atuais condutores e pela formação de motoristas mais jovens, mais dispostos a absorver as novas tecnologias. Parcerias com escolas profissionalizantes seriam o caminho mais óbvio para esse fim.

Em uma economia de livre mercado, todo excesso de demanda é compensado por um aumento na oferta. Se faltam motoristas, cabe aos interessados – os empregadores – instituir os meios de atraí-los, seja pelo aumento de salários seja pela adoção de incentivos de outra natureza, como treinamento frequente, aumento de fretes para os motoristas autônomos e redução da jornada, entre outros.

Mas no Brasil as forças do mercado, infelizmente, não estão livres. E o senador Clésio Andrade, como legítimo representante do PMDB, e mais ainda da coligação de que seu partido faz parte em nível nacional,  não acredita nas forças do mercado e da livre iniciativa. Ou, se porventura acredita, prefere ignorá-la para favorecer seus aliados à revelia dessas forças. Mas certamente, como seus amigos do PT, Clésio não acredita nos princípios fundamentais estabelecidos pela constituição brasileira: os da igualdade de direitos entre os cidadãos brasileiros.
Não é por outro motivo que resolveu devolver favores aos financiadores de suas campanhas, que desde já agradecem: neste caso, apresentou um Projeto de Lei, aprovado no dia 21 de fevereiro último na Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR), que pretende garantir ao jovem que tenha renda familiar de até R$ 1.635,00 a obtenção gratuita da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). A mesma CNH que nós outros, da classe média, temos que pagar do nosso próprio bolso. Segundo seu site, a proposta teria por objetivo “suprir a demanda do setor transportador por mão de obra qualificada”. Os recursos para financiar a habilitação virão da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), cobrada na venda de combustíveis.

O senador não explica se esses jovens que receberão a CNH de graça terão que trabalhar obrigatoriamente para o setor de transportes. Depreende-se disso que os objetivos de seu Projeto de Lei são outros: por um lado, o lado populista, agradar a uma parcela expressiva da população, (quiçá seus futuros eleitores) que receberá um presente do senador, pago naturalmente pelo contribuinte. Por outro, agradar ao setor de  transportes, que passará a contar com um contingente maior de jovens habilitados não com dinheiro do setor mas – outra vez – de nós-outros contribuintes.

Por que, pergunto, não insiste ele que os senhores donos de transportadoras paguem eles mesmos pela formação de seus condutores, desde a primeira aula de auto escola, como aliás já fazem outros setores industriais?  Por que o senador não apresenta um Projeto de Lei que trate de um empréstimo aos jovens aspirantes a condutores, a ser pago em suaves prestações após seu primeiro emprego? Por que, pergunto, o senador, não começa a discussão para a regulamentação da profissão de motorista de caminhão? Por que, pergunto, o senador não institui na sua egrégia Casa a discussão sobre o aumento da participação do transporte ferroviário no transporte de cargas, atualmente em apenas 35%?

Clésio Andrade, que foi presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT) e vice-governador de Minas, não poderia agir de outra forma. Sabe como poucos participar do jogo  fisiológico em que não só ele mas quase todos de seu partido são tão bons, e que nós outros abominamos, que consiste em atender a interesses privados com dinheiro público; em dar o peixe ao invés de ensinar a pescar – e comprar, digo, cobrar votos dos injustamente favorecidos.  O contribuinte, mais uma vez, paga o pato, ou o voto.
  
Pode parecer uma crítica excessiva a um caso tão “inexpressivo”. Afinal, são apenas uns poucos milhares de jovens que vão ter a graça de ter sua carteira sem pagar um tostão por elas. Mas da ladeira escorregadia da iniquidade institucionalizada não se sai facilmente. Todos nós que acreditamos na democracia de facto tentaremos manter nosso equilíbrio. E, se nos recusarmos a apontar um dedo para os populistas fisiológicos, logo estes senhores farão com que percamos não só os demais dedos mas todos os nossos anéis.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Resenha: privatize já













Por Pedro Lobo Martins

Quase nada é mais ineficiente e degradante quanto o estado quando se mete a querer gerir uma empresa: é o Estado-trembala, Estado-ferrovias, Estado-correios, Estado-eletricidade, Estado-banqueiro, Estado-Infraero, Estado-portos, Estado-paternalista, Estado-donodisso, Estado-donodaquilo.

Enquanto houver Estado-empresário vai haver moscas e parasitas ao seu redor, em busca de grandes nacos, de migalhas e de uma gota de sangue; vai haver corrupção, da esquerda e da direita; vai haver um capitalismo deturpado, em que só os amigos do rei e sua corte se dão bem, usando o público para benefício privado. Além disso, vamos ver o dinheiro de nossos impostos sendo jogado fora para financiar um corrupto e ineficiente “nacional-desenvolvimentismo” que seria melhor chamar de nacional-estatismo, ou talvez de estatismo socialista? Ou quem sabe ainda de nacional-socialismo?!

Fique o empreendedorismo por conta dos indivíduos, que devem arcar sozinhos com os riscos, amargando eventuais prejuízos e deliciando-se (por que não?) com os lucros. Fique o governo por conta de criar um ambiente propício ao empreendedorismo, um ambiente de respeito às leis e ao Estado de Direito; um ambiente que premie o mérito e não o coitadismo; que assegure os direitos individuais, incluindo o de livre-escolha, que garanta a liberdade, incluindo a de imprensa.

David Hume dizia que a liberdade não é perdida de uma só vez: seus inimigos procuram minar nossa integridade moral e nosso poder de escolha, tolhendo nossa liberdade pouco a pouco até que não sobre mais nada. Nossa essência e nosso caráter vão-se com ela. Friedrich Hayek acertou no alvo quando percebeu que, à medida que a liberdade econômica é tomada aos indivíduos, as liberdades pessoal e política também se perdem. Os romenos e albaneses sabem bem o que significou isso. Cubanos e Coreanos sabem ainda hoje. Venezuelanos, bolivianos e argentinos estão começando a saber. E o Brasil, sob a égide do PT?

Quando o Estado começa a ampliar seu raio de ação, aumentando ao mesmo tempo seu poder sobre as pessoas, é hora de dizer um não. Um não ao estado-corruptor e àqueles que, fugindo do corolário básico da liberdade querem negá-la aos outros: a responsabilidade individual, mesmo com todos os seus custos e incertezas.

Este livro, de Rodrigo Constantino, chegou em boa hora.
(Leya, 2012)


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Joaquim e a Inquisição

Por Pedro Lobo Martins

Ligo meu computador hoje pela manhã e vejo no facebook uma postagem de uma professora de História da UFMG, falando de Joaquim Barbosa:

“Infelizmente, a fama subiu-lhe à cabeça e o ministro Joaquim Barbosa está jogando para a platéia. Intempestivo e rude, quer passar para a história como o magistrado que combateu a corrupção. Por vezes, perde a compostura e o senso de justiça...
Estranho um juiz desconhecer que o excesso de zelo e a vontade de punir podem redundar em injustiça.
E, como na Espanha de Torquemada, a massa delira...”


Torquemada? Excesso de zelo?

Infelizmente é comum a muitas pessoas, ao sentirem suas ideias de justiça (ou seu partido político) de alguma forma atacados, partirem para o denegrimento dos algozes  (ou bodes expiatórios) que eles mesmos instituem. Seria bom ter sempre o cuidado de não pretender desmerecer as ideias, ações e posicionamento atacando as pessoas por trás delas ou mesmo suas motivações pessoais. Chegou-se ao cúmulo de se levantar a suspeita de que Barbosa estaria se aproveitando da toga para vingar-se do cativeiro enfrentado por seus ancestrais. Se a maior parte das críticas não foi tão fundo, muitas cutucaram desrespeitosamente a pessoa do magistrado.

Se as ideias são sempre discutíveis e as pessoas são sempre imperfeitas, apenas as primeiras, e não as últimas, são capazes de sustentar a democracia.  E é só na democracia que as pessoas (ou, como prefere pejorativamente a professora, a ”massa” delirante, a “platéia”) podem avaliar as ideias e gostar, ou não, de quem as defende.

Invertendo a questão: não é meu gosto pela extensa obra da professora no campo da história colonial mineira (sobretudo por seus estudos sobre a "Guerra" dos Emboabas) que me tornará um incondicional admirador de sua pessoa, que alias nunca conheci.

Comparações com a inquisição parecem-me fora de propósito e anacrônicas. Torquemada e seus pares defendiam interesses da Igreja Católica no contexto de uma Reconquista ainda incompleta e dos primeiros laivos da Reforma. As decisões do STF  (Barbosa, a propósito, não é o único a votar) são apenas um tiro contra uma instituição secular (em ambos os sentidos) e arraigada, que é a corrupção. E quem melhor do que os ministros do STF para julgar a corrupção, num país em que a justiça (sobretudo nas instâncias inferiores) não é exatamente cega e onde milhares de telhados são de vidro?

É estranho a professora notar a “descompostura” do ministro Joaquim Barbosa e não criticar a frieza e inconsistência demonstradas por Lewandowski no decorrer do julgamento. Se a polidez é desejável, nem sempre acolhe a razão. Como retorquiu o próprio Joaquim Barbosa ao revisor, após este fazer notar a “rudeza" do relator:



“Em qualquer atividade humana, urbanidade e responsabilidade são qualidades que não se excluem. Mas, às vezes, a urbanidade presta-se a ocultar a falta de responsabilidade. A propósito, é com extrema urbanidade que muitas vezes se praticam as mais sórdidas ações contra o interesse público.”

É sempre bom lembrar: muitos nazistas cometeram as maiores atrocidades sem se desviarem de sua frieza, de uma "urbanidade" e até mesmo da polidez.

Nuremberg e a história, felizmente, não os julgaram por sua compostura.



domingo, 11 de março de 2012

A Princesa escreve ao Conselheiro


























Um menino lê uma carta

Dentre as lembranças mais vivas da minha infância está a "carta do Conde D´Eu ". 
 
Ficava em um quadro emoldurado na parede dos fundos do escritório do meu avô Mauro, entre duas folhas de vidro, não sei se a cópia ou a original, o que, afinal de contas, não importa. Lá estavam, bem à mostra, aquelas letras cheias de floreios em um papel já amarelado, no fim do qual nós, que já conhecíamos da escola os nomes longos e leopoldinos dos tempos misteriosos do Império, distinguíamos um nome inusitadamente curto: Gastão de Orleans. E a data: 17 de novembro de 1889. 

Mas quem era o Joaquim Delfino, a quem era endereçada a carta? Minha avó Luiza explicava que era seu avô, pai de seu pai, amigo do Conde D´Eu e do próprio imperador, de quem era Conselheiro e a quem servira como ministro da Justiça, da Marinha, da Guerra e outros cargos pomposos. No dia seguinte estava com uma cópia, tirada de em uma gaveta, e menino orgulhoso, mostrava a todos os colegas da escola pública que frequentava. Mais que atiçar a vaidade infantil, a carta me mostrou que a história não estava apenas nos livros escolares. Correndo no nosso sangue, tornava-nos parte dela. E 1889, de uma data distante, passou a ser ainda ontem. 



                                                                O Conselheiro Joaquim Delfino Ribeiro da Luz  (1824 -1903)


Meus avós se foram e a carta foi parar na gaveta profunda - e cheia de coisas estranhas - da mesa do meu pai, em seu escritório. Lá ficou junto a rolos velhos de negativos, fotos desgarradas de meninos tristes com erupções de pele, vidrinhos com dentes de leite dentro e uma papelada danada. E a carta passou a ter todo o tempo do mundo para contar àqueles objetos “modernos” aquele e outros causos que se ouviam nos derradeiros momentos do Império, e, quem sabe, desde os tempos de D. João VI.

Certamente a velha carta, que o tempo tratou de dar vida, não a ela, mas às mãos que a escreveram e aos tantos dedos que a tocaram, hoje quietos, contou suas histórias em muitas outras gavetas. Ninguém sabe por onde andou: da gaveta de Joaquim Delfino à de seu filho Joaquim Bento? Da escrivaninha deste à de seu filho Joaquinzinho? Da mesa de cabeceira do tio Joaquinzinho à gaveta de sua irmã, minha avó? 

O fato é que, de esconderijo em esconderijo, foi parar na gaveta em que repousará para sempre, depois de 122 anos, no Museu Imperial de Petrópolis. Lá, entre tantas outras, poderá contar sua história, não a objetos de ouvidos moucos, mas aos olhos sempre vivos dos que se interessarem por sua pequena história.
 
Os documentos históricos e os objetos de família são como os livros: nunca serão nossos, mas apenas passam por nós. Sobreviverão a nós se formos seus bons e fiéis guardiães. 

A carta conta suas histórias

No início da década de 1860 Joaquim Delfino Ribeiro da Luz foi nomeado conselheiro do Império. Em homenagem à imperatriz Teresa Cristina, mãe da princesa Isabel e esposa de D. Pedro II, propõe então à câmara municipal da velha Espírito Santo do Cunquibus, da qual era presidente, uma nova denominação para o lugar: Vila Cristina.

Em 1868 a jovem Princesa Isabel, de 22 anos, e Dom Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, o Conde D´Eu, seu esposo francês, fizeram uma viagem pelo sul de Minas. Os objetivos, aparentemente, não eram só amarrar laços políticos e retribuir favores: após quatro anos de casamento, a Princesa Isabel queria engravidar.

                                                                                        A jovem Princesa Isabel


É que ouvira falar das “águas virtuosas” de Caxambu. Conhecidas desde há muito pelos índios Cataguases que habitavam a região, a existência das fontes hidrominerais foi tornada pública apenas no início do século XIX, quando sua fama se alastrou. O interesse do casal imperial estava voltado mais especificamente para as fontes de águas ferruginosas. É que a Princesa sofria de anemia crônica e esta, segundo os médicos, era a principal razão desua infertilidade. Passou pouco mais de um mês em Caxambu, restabelecendo-se de sua anemia. 

Era hora de pagar promessas. Após orações públicas dirigiu-se ao alto de um morro e, em cerimônia ali realizada, lançou a pedra fundamental da Igreja de Santa Isabel de Hungria. Foi lavrada ata oficial e formada uma Comissão Construtora, subscrevendo-se para isso uma quantia razoável. Joaquim Delfino muito provavelmente estava presente.

                                                                                    As fontes ferruginosas D. Isabel/Conde D´Eu


Enquanto isso, uma grande movimentação quebra a calmaria da nova vila de Cristina: naquele primeiro dia de dezembro de 1868 as sinhás usam seus vestidos e joias mandados vir da Corte. Os coronéis penduram no peito suas condecorações, suas veneras. Chega então a importante comitiva imperial, vinda de Caxambu, a fim de agradecer a homenagem prestada pela Vila Cristina à mãe da princesa. Às onze horas da manhã o cortejo entra pela rua direita. Das janelas e sacadas descem colchas rendadas. A banda toca empolgada. A multidão de todas as cores grita vivas das ruas e do alto dos sobrados. Em seguida as pessoas importantes do lugar vão até a casa de Joaquim Delfino, anfitrião do casal real, para o beija-mão protocolar. Após o banquete, todos seguem para a Matriz para ouvir o Te Deum mandado celebrar pela câmara em ação de graças “pela feliz viagem de S.S.A.A e pela distincta honra que fizerão a esta Villa com sua vizita”. Às seis horas da manhã do dia seguinte a comitiva deixa Cristina.


                                                                                      A visita do casal imperial a Cristina foi motivo de grande festa


Algum tempo se passou e a Princesa finalmente engravidou. Entretanto, as primeiras gestações não tiveram sucesso, advindo vários abortos. A primeira gravidez que levou a termo resultou em uma menina que nasceu morta, após um trabalho de parto difícil, que durou mais de 50 horas, em que os quatro obstetras que a assistiam tiveram que abrir o crânio da criança para tentar fazê-la passar pelo canal. Foi só em 1875, onze anos depois de casada, que veio à luz D. Pedro de Alcântara. Mas o menino nasceu asfixiado em conseqüência de um fórcipe e sofreu lesões no braço esquerdo, que ficou paralisado. Isso lhe valeu o apelido de Mão Seca. Nos anos seguintes a realeza brasileira ganhou outros dois herdeiros, Dom Luiz Maria e Dom Antonio.


                                                                                                   O casal imperial e seus três filhos


A construção da Igreja de Santa Isabel da Hungria seguiu aos trancos e barrancos, mesmo após o nascimento dos três filhos desejados, embora outras promessas tenham sido cumpridas de forma mais imediata. Em 6 de novembro de 1884, por exemplo, ofereceu a Nossa Senhora uma coroa de ouro cravejada de brilhantes, que mais tarde, em 1904, coroou a Imagem de Aparecida como Rainha do Brasil, e em cuja cabeça repousa ainda hoje.


                                                                                              A coroa de Nossa Senhora de Aparecida


Dois dias após a proclamação da república, Isabel e esposo estavam a caminho da Europa a bordo da canhoneira Parnayba, que os levaria ao paquete Alagoas para uma viagem sem retorno. Pode-se apenas imaginar os pensamentos que inundavam os sentidos de Isabel, que vivera seus 42 anos em terras brasileiras; um nada, se comparado a toda uma longa vida aqui vivida por seu pai, o já idoso D. Pedro II.



                                                                                                       O paquete Alagoas


Entretanto, entre tantas aflições e pensamentos desencontrados, lembrou-se daquela promessa, feita anos antes, e, fazendo da pena de seu marido certamente eco de suas palavras, escreveu àquele com quem compartilhara a mesa 20 anos antes, em Cristina, e que, desde 1885, ocupara os cargos de Ministro da Justiça e Ministro da Guerra do Brasil. Joaquim Delfino, embora agora afastado do círculo de poder no novo regime republicano, lhe parecia o único capaz de lhe acalmar esta aflição, a aflição do exílio.


Exmo. Sr. Cons.ro Joaquim Delfino,
Tendo de retirar-me, bem com pesar meu, d´este paiz não quero deixar de mais uma vez recommendar à tua protecção, em nome da Princeza e no meu, a conclusão das obras da Capella de Santa Isabel de Hungria, no arraial de Cachambú, município de Baependy. Estas obras pias, projectadas desde seu começo pela Princeza, teve (sic) certo impulso principalmente devido aos esforços de V.Exa. e de seu illustre filho o distincto engenheiro Dr.Christiano Ribeiro da Luz.
Será para nós grande satisfacção saber que não fica ella abandonada, mas que marcha para sua conclusão. Confiando pois no espírito religioso de V.Exa. e de seu digno filho, e nos sentimentos de amizade que nos tens mostrado, ouso esperar que mais uma vez tomarás em mão este piedoso emprehendimento.
Aproveito com prazer esta opportunidade para reiterar-lhe a expressão dos meus sentimentos de particular consideração e estima.
Gastão de Orleans
Bordo da Canhoneira Parnahyba,
Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1889”

Não se sabe exatamente como Joaquim Delfino intercedeu a favor da continuação das obras, mas elas prosseguiram, ainda que lentamente, tomando as feições do estilo neogótico tão característico das construções religiosas de fins do século XIX e primeira metade do século XX. A partir da década de 1890 as obras foram tomadas pelo engenheiro Honorato Pereira de Carvalho, sob os auspícios do Conselheiro Francisco de Paula Mayrink, 15 anos mais jovem que Joaquim Delfino. 

Mayrink era detentor da maior fortuna pessoal do Brasil na época, e seus interesses abrangiam todo tipo de negócio: bancos, companhias de estradas de ferro, iluminação a gás,  imprensa, teatros e diversos empreendimentos industriais. Em Caxambu deu início à exploração comercial das águas minerais, e hoje uma das fontes do Parque das Águas leva seu nome. Graças a ele a Igreja de Santa Isabel de Hungria foi finalmente consagrada, em 1897. Na França, onde cumpria exílio e onde veio a falecer em 1921, Isabel deve ter sorrido. O velho Joaquim Delfino, no Rio de Janeiro, também sorriu. Promessa cumprida.



                                                                                                                      A Igreja de Santa Isabel de Hungria


A carta vira notícia

 Em 13 de agosto de 2011 uma pequena comitiva formada por pelos bisnetos de Joaquim Delfino: Nelson Ribeiro da Luz Lobo Martins e seu irmão Mauro Lobo Martins Jr.,acompanhados das respectivas esposas Maria Josephina e Maria do Rosário, passou por Petrópolis. No Museu Imperial esperava por eles seu diretor, Maurício Vicente Ferreira Jr. Em uma cerimônia simples Nelson, seu penúltimo guardião, assinou o termo de doação da carta, que passou a uma gaveta daquela instituição, onde estará à disposição dos pesquisadores.




                                                  Nelson assina o termo de doação da carta ao Museu Imperial,
                                                  representado por seu diretor, Maurício Vicente Ferreira Jr.   


Assim noticiou o evento o site do Museu Imperial de Petrópolis:

 http://www.museuimperial.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2070:museu-imperial-recebe-doacao-de-carta-escrita-pelo-conde&catid=14:news-releases&Itemid=107

Museu Imperial recebe doação de carta escrita pelo conde d'Eu em 1889

Recentemente, o Museu Imperial recebeu uma importante doação para seu Arquivo Histórico. O médico Nelson Ribeiro da Luz Lobo Martins doou uma carta escrita em 17 de novembro de 1889 pelo conde d'Eu para Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, que foi magistrado, político e proprietário rural brasileiro. O Dr. Nelson é bisneto de Joaquim Delfino e recebeu a carta de seu pai, após o documento ter sido passado de geração em geração.

 Como a data aponta, a carta foi escrita dois dias após a Proclamação da República. O marido da princesa Isabel estava a bordo do navio Parnaíba, que levou a família imperial até o navio Alagoas para partir para a Europa rumo ao exílio.

 Na carta, o conde d'Eu solicita que Joaquim Delfino dê procedimento às obras de construção da Igreja de Nossa Senhora da Hungria, em Caxambu (MG). A igreja havia começado a ser construída em 1868, em cumprimento a uma promessa feita pela princesa Isabel.

 A correspondência passará a integrar o acervo do Arquivo Histórico, que conta com mais de 200 mil documentos, incluindo cartas, fotografias, ilustrações e outros.

Esta informação foi replicada por pelo menos vinte e sete outros sites de notícia, entre eles: Folha on-line, O Globo, Jornal Floripa e Tribuna de Petrópolis, além de sites de diversas instituições museológicas.

  
A beleza de uma carta

 
Apenas uma carta amarelada pelo tempo, escrita a caminho do exílio. Mas onde podemos encontrar a beleza, fora da perfeição da natureza, senão nos nossos pequenos gestos de desprendimento, em meio à dor, humanos e falíveis que somos?






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