terça-feira, 7 de junho de 2011

Bons Preconceitos

   












Hoje fui buscar o Augusto na Escola e perguntei a ele o que tinha aprendido no dia.  É que gosto de aproveitar a oportunidade para mergulhar com ele um pouco mais fundo no assunto. Ele adora. Quando cabível, e quase sempre é, trato de doutrinar. Isso mesmo: doutrinar.  Não penso como o Pink Floyd. Acho que as crianças não devem ser deixadas sozinhas, nem pelos professores e muito menos pelos pais. Ele é meu filho, e doutrino sim. Com amor. Melhor que deixar a televisão doutrinar, melhor que deixar o governo doutrinar, melhor que deixar quem não o ama doutrinar, pois as crianças, com sua mente maniqueísta, querem  muito diferenciar o “certo” do “errado”. Se fizerem isso com os pais, estarão dispostas a ouvi-los pelo resto de suas vidas, ou os ecos de suas vozes, quando estes não existirem mais. Se não, terá sido tarde demais: na adolescência dispensarão seus conselhos para aprenderem tudo com os amigos, que provavelmente terão dificuldades em escolher, e se tornarão adultos menos próximos do que um pai gostaria.

A professora de Religião disse que não devemos ter preconceitos. E a professora de História, que não existem culturas melhores que as outras. Que bom, meu filho está tendo lições que o tornarão um homem do século XXI: tolerante, liberal, que saberá relativizar as situações e será capaz de sentir empatia por seu semelhante menos afortunado ou que pense diferente. Mas é isso, sem tirar nem por, que quero pra ele?

Enquanto o carro enfrentava o trânsito das sete (aprendi a deixar o carro enfrentá-lo sozinho, eximindo-me de participação nesse incômodo), comecei a pensar junto com meu filho. A conversa, acredito, foi adequada para ele, um menino de oito anos. Quando ele crescer, eis o que gostaria que ele entendesse melhor:
  
Nesses dias politicamente corretos há um grande preconceito contra o preconceito. Que pessoa virtuosa no mundo “civilizado” do século XXI seria a favor do preconceito? Nos nossos dias, quem, em boa companhia, admitiria ser preconceituoso? Fazê-lo é o mesmo que proclamar-se estreito em seus julgamentos, rígido em seus princípios, arrogante em suas atitudes, convencido de sua superioridade e moralista. Melhor então engolir os preconceitos do que admiti-los publicamente.

Ao contrário, a pessoa sem preconceitos, ou aquela que pretende sê-lo, submete todas as suas suposições ao escrutínio de uma suposta razão; seus julgamentos, se hesitam, terminam por tomar o caminho da generosidade. O indivíduo não discrimina preferências ou ações alheias. Sendo um cidadão do mundo, de mente aberta, trafega livremente pelos mais diversos universos culturais, os quais se inclina mais a compreender e aceitar do que a julgar e condenar. O indivíduo sem-preconceitos relativiza tudo, e isso inclui sua própria dimensão individual, que acaba enfraquecida. Mas ele procura compensar essa perda da individualidade apelando para a dúvida.  O sem-preconceitos quer libertar-se e, portanto, duvida. Duvida para recuperar sua individualidade. Seu ceticismo não acata limites, nem mesmo simbólicos. Sua busca por si próprio não aceita barreiras, muito menos as impostas pela autoridade.
  
Se o indivíduo cartesiano surgiu no século XVII, as crianças demoraram mais ainda a se tornar entes com personalidade própria. Hoje, contudo, como se verifica pelo status que adquiriram nas famílias ocidentais e pela crise de autoridade que aflige a maioria das escolas, elas finalmente se tornaram “livres”. Investidas desde pequenas da autoridade para escolher entre uma miríade espantosa de opções, para exercer seu poder de veto e para arbitrar entre o bem e mal, as crianças finalmente passaram a existir. Quem já viu uma mãe debruçar-se sobre seu filho de três ou quatro anos, em um supermercado, para perguntar o que gostaria de comer no jantar, sabe do que estou falando. A idéia é que, supostamente, se estará concedendo a ela a responsabilidade pela escolha, deixando de transmitir “preconceitos” maternos. “Autonomia”. Mas a lição verdadeiramente transmitida é que a vida deve ser guiada e levada pelos julgamentos e gostos da criança e não por regras externas a ela. Nem a mãe nem a criança (e nem a escola, para todos os efeitos) percebem que, ao invés de se ver livre de preconceitos externos, a criança se tornará escrava de seus próprios preconceitos, oriundos de sua razão apenas incipiente, insuficiente.

Se a criança é o pai do homem, o homem que dela nasce não é livre. Sua dúvida não encontra respostas. Sua individualidade é ilusória. Não espanta que a marca registrada dos adolescentes (e de muitos adultos) de hoje, sustentada e emulada pela mídia e produtos direcionados para esse público, seja a expressão facial de uma hostilidade abobada, uma mescla do indiferente olhar bovino com a ameaça latente de um pit bull.

Quero que o adulto que nascerá da criança que é o meu filho se ancore nos adultos que hoje são seu pai e sua mãe. Quero que ele aprenda conosco que não se deve fazer discriminações pessoais baseadas em características inatas, como cor da pele; em ideias políticas, científicas ou de qualquer outra natureza; e em preferências pessoais, incluindo sexuais. Não quero que ele seja politicamente correto, mas apenas, e isso basta, correto, ancorando-se nos valores e princípios que ele buscará primeiro nos ensinamentos de seus pais e demais tutores bem intencionados (incluindo professores e amigos), e que mais tarde certamente será capaz de encontrar em si próprio. Mas, ao contrário do que disseram superficialmente suas professoras de religião e de história, quero que ele saiba fazer algumas discriminações. Quero que meu filho seja preconceituoso.

Sim, existem bons preconceitos. E estes dizem respeito sobretudo às más atitudes. Quero que meus filhos saibam discriminar atitudes generosas das mal-intencionadas; atitudes respeitosas das egoístas; atitudes sábias das ingênuas; atitudes que, extrapolando a esfera pessoal  do agente, os atinja de forma agressiva ou anti-ética. Mas quero também que meus filhos saibam diferenciar o verdadeiramente belo daquilo que apenas aparenta virtude. Quero que saibam o que é arte e o que apenas pretende ser. Quero que reconheçam, para seus amigos, bons caráteres. Não quero que falem como não devem, que escrevam mal; melhor: quero que saibam ser convenientes. Quero que saibam diferenciar culturas de subculturas. Quero que entendam que a polidez, embora não baste, é sempre necessária. Quero que tenham consciência de que as coisas populares podem ser ruins e que as coisas impopulares podem ser boas, e vice-versa; quero que desprezem a ortodoxia acadêmica que prega o relativismo geral de que já que nada é melhor e nada é pior, então o pior é melhor porque é mais difundido; quero que saibam discutir ideias, sem menosprezar as pessoas que as têm.Quero que, como Churchill, defendam sempre o direito de as pessoas falarem sobre suas ideias, quaisquer ideias, mesmo que não concordem com elas. Assim saberão distinguir as nuances do que lhes parece errado para agir, pelo resto da sua vida, como lhes parecer certo.

Neste mundo de relativismos, algumas certezas são necessárias. Na educação dos filhos, em muitas situações a intuição, baseada em probabilidades construídas a partir da experiência dos pais, deve prevalecer sobre a observação, que requer a razão, que as crianças ainda não desenvolveram. Estas, ao crescerem e conquistarem autonomia e espírito crítico (razão), certamente julgarão seus pais e, ao formarem seus conceitos, filtrarão os "preconceitos" paternos que considerarem válidos. Irão tornar-se, assim, pessoas razoáveis e críticas, e não indivíduos hipercríticos, sem certeza de nada e ao mesmo tempo com todas as certezas do mundo, como se se veem aos montes por aí.
 
Não sou o melhor pai do mundo, mas sou o pai que meus filhos têm. Tenho apenas alguns anos para começar a honrar este papel, pois eles logo crescerão. Os filhos são meus e de minha esposa, mas o mundo, que é muito maior, é todo deles. E quero que eles, crescendo, sejam também do mundo, carregando pelo resto de suas vidas os princípios e valores que formos capazes de transmitir a eles e que tivemos a felicidade de receber de nossos pais. A omissão seria imperdoável. Imbuídos desde pequenos, entre outras coisas, de bons preconceitos, meus filhos terão os ombros mais leves, sem o peso da dúvida. Assim, espero, se tornarão verdadeiramente livres.

E eu também.





               

               

               

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