terça-feira, 9 de julho de 2013

Escravidão Médica





Por Pedro Lobo Martins

Antes de mais nada, sou médico e trabalho exclusivamente para o SUS. Acredito que, dentre as poucas obrigações do Estado estão as de usar o dinheiro dos impostos para pagar pelo fornecimento universal de saúde, educação e segurança, todos entendidos em sua dimensão mais ampla. Pagar pelo fornecimento e não fornecer, observe-se essa importante diferença conceitual. O Estado não fornece nada. As pessoas, sim.

Trabalho no SUS porque acredito estar contribuindo para esse "fornecimento" de saúde. Porque gosto, porque sou pago (ainda que mal) para isso, mas sobretudo porque quero. Não admitiria que fosse por obrigação.

O governo Dilma Rousseff, numa clara demonstração de seu viés fascista, vem com mais essa de obrigar os médicos a trabalhar para o SUS por dois anos, ao fim de sua formação. Com seu jeitão de chefona de gabinete do dirigismo estatal, que engraçada e anacronicamente até combina com seu sobrenome eslavo, atropela as entidades representativas e o próprio Congresso para entabular mais uma Medida Provisória de alcance permanente.




Não adianta maquiar as coisas. O PT pretende nos enganar ao dizer que o trabalho no SUS vai fazer parte da grade curricular, passando a compor o 7º e 8 º anos do Curso, que ora conta com "apenas" 6 anos, para beneficio da formação médica. Para meio entendedor é óbvio que isso é uma armadilha que significa o mesmo que obrigar alguém recém-formado a trabalhar por dois anos para o SUS onde o ministro bem entender e com uma irrecusável bolsa definida pelo próprio dito cujo. Isso mesmo para aqueles oriundos de faculdades particulares!

A reação a esse ato ditatorial tem sido menor do eu que gostaria. Mas não me surpreendo. As coisas caminham mais ou menos assim mesmo nas repúblicas bolivarianas, todas elas seguidoras da cartilha da esquerda fascista: primeiro cria-se um clima propício a mudanças "revolucionárias" (as manifestações das ruas por mais saúde, que não clamavam exatamente por escravidão médica, mas    tudo bem); depois cria-se um ato (ou MP) verticalíssimo que dá uma solução autoritária mas com bons resultados eleitoreiros no curto prazo, no sentido de fazer parecer beneficiar a maioria; então, os "inimigos do povo", que ousam apontar seus dedos para essas execrações, são eles mesmos execrados e os potenciais oponentes, cooptados, ou melhor: forçados a se tornarem "patriotas", um a um; por fim, estão criadas as condições para mais atos autoritários em nome de um "bem da coletividade". Stalin e Hitler ficariam orgulhosos de ver seus métodos aplicados à risca. Ut rota vertitur...






Nossa democracia, sendo ainda jovem, não fez entranhar na cabeça das pessoas seus altos valores. Daí as reações ambíguas a essa monstruosidade petista (ou petralha, como diria o Reinaldo Azevedo). As associações de estudantes e grande parte dos reitores, com suas tradicionais cabeças vermelhas, ou no mínimo cinzentas, ficam feito baratas-tontas sem saber o que dizer. Acabam por não desapontar quem deles espera declarações politicamente corretas: a saúde do povo em primeiro lugar!...

Democracia, deveriam saber, não é o poder emanado da voz da maioria, embora no Brasil nossos políticos e grande parte da população torçam e ajam para as coisas funcionarem assim. Democracia é, antes de tudo, o respeito às liberdades individuais, ainda que estas liberdades sejam clamadas por uma minoria. Os homossexuais devem ter seus direitos garantidos pelo Estado, embora sejam uma minoria. Os heterossexuais também devem ter seus direitos garantidos pelo Estado, mas não por serem maioria. Os direitos individuais não são negociáveis em uma banca de advogados, em um palanque de políticos e nem sequer em uma conversa de boteco. Discutidos, mas não negociados. Não em uma democracia.

Não precisaria dizer que, entre os direitos e garantias individuais mais básicos está o direito de escolha. Embora a liberdade de escolha se transfigure eventualmente em uma ilusão (somos marionetes do destino, diz Sam Harris), quero pelo menos poder escolher (ou perceber que escolhi) a minha esposa, meu carro, onde moro, os livros que leio, a profissão que abraço; e quero que meus conterrâneos brasileiros possam fazer o mesmo, pois se não puderem hoje meus filhos não poderão amanhã. Quero, por isso mesmo, que possam escolher onde vão trabalhar.

Os médicos não existem para servir à coletividade. Todos eles escolheram suas profissões para servir, antes de mais nada, a eles mesmos, com seus anseios e aspirações particulares. Acabam por servir à coletividade como efeito colateral positivo de seu trabalho, quando bem feito. Como servem à coletividade com seu trabalho e esforço o sapateiro que calça o menino e o professor que o educa; a manicure que pinta as unhas da senhora e o Lula, torneiro mecânico que ajudou a fabricar seu automóvel. O sacerdócio na medicina (no sentido de trabalhar sem levar em conta a remuneração auferida), ao contrário do esforço individual, deve ser uma opção, não uma obrigação.






Mas os bolivarianos não percebem isso, que Adam Smith captou há mais de dois séculos: que os efeitos colaterais positivos da miríade de escolhas livremente realizadas por indivíduos livres em um ambiente de livre mercado traduzem-se no bem da coletividade. A supressão, ainda que de apenas alguns desses direitos, por seres supostamente oniscientes postados no aparato dirigente estatal, diminui inexoravelmente a eficiência do sistema.

Querem que os médicos sejam obrigados a trabalhar no SUS, sem direito a escolha. Querem que médicos cubanos, que já não têm mesmo direito algum de escolha, venham trabalhar no SUS. As escolhas mais fáceis costumam ser as escolhas mais burras, e as mais enganadoras. É mais fácil, e de maior apelo populista, lotar os serviços de urgência e emergência com médicos recém-formados (oops, desculpe: ainda não formados) do que atrair para eles os médicos mais capazes e experientes com bons salários e condições de trabalho. Tem muito dinheiro dos nossos impostos por aí para isso. É só tirá-lo de onde ele não deveria ser gasto, a começar pelos estádios de futebol e passando necessariamente pelos subsídios, subvenções, concessões e patrocínios em que o dinheiro público está corrompidamente presente, não nos esquecendo, claro, do Congresso Nacional com seus gastos estapafúrdios, esculhambatórios e ineficazes.

Para terminar, o tiro muito provavelmente vai sair pela culatra: menos gente vai querer, e poder, fazer um curso completo (e mais caro) de medicina em até 11 anos, incluídos 2 ou 3 de residência médica; vão continuar a faltar recursos não-médicos para a saúde, incluindo enfermeiros e técnicos de enfermagem (mas é claro que eles, também, vão cair na roda-viva);  com o aumento do tráfico de escravos, os salários de todos esses profissionais vai cair na exata proporção da qualidade do seu serviço: o descontentamento será geral. Por fim, certamente a distribuição dos profissionais pelo país não será baseada no mérito: estarão abertas as portas para o favorecimento e a corrupção.

Por enquanto é só a escravidão médica. Em alguns meses, quem sabe, haverá futuros engenheiros forçados a trabalhar para o Estado nos rincões da Amazônia, professores obrigados a labutar por um salário ainda pior aonde quer que sejam mandados. Quem sabe os advogados recém-formados não terão que prestar assistência judicial gratuita onde não quiserem? Só os ladrões, dentro e fora das prisões, dentro e fora do governo, não serão obrigados a trabalhar para o Big Brother Orwelliano tupiniquim. Chegará o dia em que todos nós, talvez, sejamos obrigados a doar nosso tempo e nossas posses para o Leviatã insaciável, como bons patriotas que seremos, para o bem da coletividade. 

David Hume dizia que a liberdade não é perdida de uma só vez: seus inimigos procuram minar nossa integridade moral e nosso poder de escolha, tolhendo nossa liberdade pouco a pouco até que não sobre mais nada. Nossa essência e nosso caráter vão-se com ela. Friedrich Hayek, em O Caminho da Servidão, acertou no alvo quando percebeu que, à medida que a liberdade de escolha é tomada aos indivíduos, as liberdades pessoal e política também se perdem.

Já disse isso antes e repito: da ladeira escorregadia da iniquidade institucionalizada não se sai facilmente. Todos nós que acreditamos na democracia de facto tentaremos manter nosso equilíbrio. E, se nos recusarmos a apontar um dedo para os populistas fisiológicos e insensíveis à democracia, logo estes senhores farão com que percamos não só os demais dedos mas todos os nossos anéis e pior: a nossa liberdade.















5 comentários:

Nelson Conde Lobo Martins disse...

Pedro,
parabéns pelo texto!
Deveria ser publicado em jornais.
Nossa sociedade precisa que estas idéias sejam postas com mais firmeza e defendidas por todos os que prezam a liberdade.

Kynismós! disse...

Excelente texto!

Marcia Adriana L. Oliveira disse...

Pedro,
O seu texto trás no seu bojo os frutos do vivido, e, acredito que a liberdade vem com a consciência, e esta com o conhecimento... Logo, como ser livre para fazer escolhas quando não se conhece a realidade de um ESF, em vários lugares? Quando não se convive com a realidade de setores de urgência e emergência hospitalar? Acredito também, que o mal uso do patrimônio público proporcione esta indignação, assim, como acredito que o atendimento obtido de algumas pessoas, que não são médicos, mas estão médicos, e que nem examinam direito e nem dão atenção aos seus pacientes (clientes) fazem com que muitos aceitem a vinda de outros profissionais, na esperança de dias melhores... Porém, profissionais como você que, pelo que mostrou ama a profissão e é comprometido com o que faz pode sim, proporcionar um outro olhar, crítico reflexivo sobre esta realidade,e, então, conscientes, possam fazer outras escolhas e tecerem outras opiniões...Afinal, acredito que o conhecimento, o conhecer ajuda a ampliar olhares e, uma vez que houve esta ampliação, não há como voltar atrás... E, finalmente, decisões acertadas poderão ser tomadas e a liberdade, enquanto a consciência de que se tem escolhas, mas que se deve sempre assumir as responsabilidades com as mesmas, predomine sabiamente... Obrigada pelas reflexões oriundas de sua partilha!! Paz e bem!

flavia disse...

Cara,voce devia escrever mais,tpo assim...todos os dias,eu além de entender tudo,aprendo um bocado.

Obrigada,
Flavia

Pedro Lobo Martins disse...

Obrigado a todos pelos comentários e incentivos!