Por Pedro Lobo Martins
Antes de mais nada, sou médico e
trabalho exclusivamente para o SUS. Acredito que, dentre as poucas obrigações
do Estado estão as de usar o dinheiro dos impostos para pagar pelo fornecimento
universal de saúde, educação e segurança, todos entendidos em sua dimensão mais ampla. Pagar pelo fornecimento e não fornecer,
observe-se essa importante diferença conceitual. O Estado não fornece nada. As
pessoas, sim.
Trabalho no SUS porque acredito
estar contribuindo para esse "fornecimento" de saúde. Porque gosto, porque sou pago (ainda que mal) para isso, mas sobretudo porque quero. Não admitiria que
fosse por obrigação.
O governo Dilma Rousseff, numa
clara demonstração de seu viés fascista, vem com mais essa de obrigar os
médicos a trabalhar para o SUS por dois anos, ao fim de sua formação. Com seu
jeitão de chefona de gabinete do dirigismo estatal, que engraçada e anacronicamente até combina
com seu sobrenome eslavo, atropela as entidades representativas e o próprio
Congresso para entabular mais uma Medida Provisória de alcance permanente.
Não adianta maquiar as coisas. O
PT pretende nos enganar ao dizer que o trabalho no SUS vai fazer parte da grade
curricular, passando a compor o 7º e 8 º anos do Curso, que ora conta com
"apenas" 6 anos, para beneficio da formação médica. Para meio entendedor é óbvio que isso é uma
armadilha que significa o mesmo que obrigar alguém recém-formado a trabalhar
por dois anos para o SUS onde o ministro bem entender e com uma irrecusável
bolsa definida pelo próprio dito cujo. Isso mesmo para aqueles oriundos de faculdades particulares!
A reação a esse ato ditatorial tem sido menor do eu que gostaria. Mas não me surpreendo. As coisas caminham mais ou
menos assim mesmo nas repúblicas bolivarianas, todas elas seguidoras da cartilha da
esquerda fascista: primeiro cria-se um clima propício a mudanças "revolucionárias"
(as manifestações das ruas por mais saúde, que não clamavam exatamente por
escravidão médica, mas tudo bem); depois cria-se um ato (ou MP) verticalíssimo que dá uma solução
autoritária mas com bons resultados eleitoreiros no curto
prazo, no sentido de fazer parecer beneficiar a maioria; então, os "inimigos do povo", que
ousam apontar seus dedos para essas execrações, são eles mesmos execrados e os
potenciais oponentes, cooptados, ou melhor: forçados a se tornarem
"patriotas", um a um; por fim, estão criadas as condições para mais
atos autoritários em nome de um "bem da coletividade". Stalin e Hitler
ficariam orgulhosos de ver seus métodos aplicados à risca. Ut rota vertitur...
Nossa democracia, sendo ainda
jovem, não fez entranhar na cabeça das pessoas seus altos valores. Daí as
reações ambíguas a essa monstruosidade petista (ou petralha, como diria o
Reinaldo Azevedo). As associações de estudantes e grande parte dos reitores,
com suas tradicionais cabeças vermelhas, ou no mínimo cinzentas, ficam feito
baratas-tontas sem saber o que dizer. Acabam por não desapontar quem deles espera
declarações politicamente corretas: a saúde do povo em primeiro lugar!...
Democracia, deveriam saber, não é
o poder emanado da voz da maioria, embora no Brasil nossos políticos e grande parte
da população torçam e ajam para as coisas funcionarem assim. Democracia é, antes
de tudo, o respeito às liberdades individuais, ainda que estas liberdades sejam
clamadas por uma minoria. Os homossexuais devem ter seus direitos garantidos
pelo Estado, embora sejam uma minoria. Os heterossexuais também devem ter seus direitos garantidos pelo Estado, mas não por serem maioria. Os direitos individuais não
são negociáveis em uma banca de advogados, em um palanque de políticos e nem
sequer em uma conversa de boteco. Discutidos, mas não negociados. Não em uma
democracia.
Não precisaria dizer que, entre
os direitos e garantias individuais mais básicos está o direito de escolha. Embora a liberdade de escolha se transfigure eventualmente em uma ilusão (somos marionetes do destino, diz Sam Harris), quero pelo menos poder escolher (ou perceber que escolhi) a minha esposa, meu carro, onde moro, os livros que
leio, a profissão que abraço; e quero que meus conterrâneos brasileiros possam
fazer o mesmo, pois se não puderem hoje meus filhos não poderão amanhã. Quero,
por isso mesmo, que possam escolher onde vão trabalhar.
Os médicos não existem para
servir à coletividade. Todos eles escolheram suas profissões para servir, antes
de mais nada, a eles mesmos, com seus anseios e aspirações particulares. Acabam
por servir à coletividade como efeito colateral positivo de seu trabalho, quando bem feito. Como
servem à coletividade com seu trabalho e esforço o sapateiro que calça o menino
e o professor que o educa; a manicure que pinta as unhas da senhora e o Lula,
torneiro mecânico que ajudou a fabricar seu automóvel. O sacerdócio na medicina
(no sentido de trabalhar sem levar em conta a remuneração auferida), ao contrário
do esforço individual, deve ser uma opção, não uma obrigação.
Mas os bolivarianos não percebem isso, que Adam Smith captou há mais de dois séculos: que os efeitos colaterais positivos da miríade de escolhas livremente realizadas por indivíduos livres em um ambiente de livre mercado traduzem-se no bem da coletividade. A supressão, ainda que de apenas alguns desses direitos, por seres supostamente oniscientes postados no aparato dirigente estatal, diminui inexoravelmente a eficiência do sistema.
Querem que os médicos sejam
obrigados a trabalhar no SUS, sem direito a escolha. Querem que médicos cubanos,
que já não têm mesmo direito algum de escolha, venham trabalhar no SUS. As escolhas
mais fáceis costumam ser as escolhas mais burras, e as mais enganadoras. É mais
fácil, e de maior apelo populista, lotar os serviços de urgência e emergência
com médicos recém-formados (oops, desculpe: ainda não formados) do que atrair para
eles os médicos mais capazes e experientes com bons salários e condições de
trabalho. Tem muito dinheiro dos nossos impostos por aí para isso. É só tirá-lo
de onde ele não deveria ser gasto, a começar pelos estádios de futebol e passando necessariamente
pelos subsídios, subvenções, concessões e patrocínios em que o dinheiro público está corrompidamente presente, não nos esquecendo, claro, do Congresso Nacional com seus gastos estapafúrdios,
esculhambatórios e ineficazes.
Para terminar, o tiro muito
provavelmente vai sair pela culatra: menos gente vai querer, e poder, fazer um
curso completo (e mais caro) de medicina em até 11 anos, incluídos 2 ou 3 de residência médica; vão continuar a faltar
recursos não-médicos para a saúde, incluindo enfermeiros e técnicos de
enfermagem (mas é claro que eles, também, vão cair na roda-viva); com o aumento do tráfico de escravos, os
salários de todos esses profissionais vai cair na exata proporção da qualidade
do seu serviço: o descontentamento será geral. Por fim, certamente a distribuição
dos profissionais pelo país não será baseada no mérito: estarão abertas as portas
para o favorecimento e a corrupção.
Por enquanto é só a escravidão
médica. Em alguns meses, quem sabe, haverá futuros engenheiros forçados a trabalhar
para o Estado nos rincões da Amazônia, professores obrigados a labutar por um salário
ainda pior aonde quer que sejam mandados. Quem sabe os advogados recém-formados
não terão que prestar assistência judicial gratuita onde não quiserem? Só os ladrões, dentro e fora das prisões, dentro e fora do governo, não serão obrigados a trabalhar para o Big Brother Orwelliano tupiniquim. Chegará
o dia em que todos nós, talvez, sejamos obrigados a doar nosso tempo e nossas posses para o Leviatã insaciável, como bons patriotas que seremos, para o bem da coletividade.
David Hume dizia que a liberdade
não é perdida de uma só vez: seus inimigos procuram minar nossa integridade
moral e nosso poder de escolha, tolhendo nossa liberdade pouco a pouco até que
não sobre mais nada. Nossa essência e nosso caráter vão-se com ela. Friedrich
Hayek, em O Caminho da Servidão, acertou
no alvo quando percebeu que, à medida que a liberdade de escolha é tomada aos
indivíduos, as liberdades pessoal e política também se perdem.
Já disse isso antes e repito: da
ladeira escorregadia da iniquidade institucionalizada não se sai facilmente.
Todos nós que acreditamos na democracia de facto tentaremos manter nosso equilíbrio. E, se nos
recusarmos a apontar um dedo para os populistas fisiológicos e insensíveis à democracia, logo estes
senhores farão com que percamos não só os demais dedos mas todos os nossos
anéis e pior: a nossa liberdade.
5 comentários:
Pedro,
parabéns pelo texto!
Deveria ser publicado em jornais.
Nossa sociedade precisa que estas idéias sejam postas com mais firmeza e defendidas por todos os que prezam a liberdade.
Excelente texto!
Pedro,
O seu texto trás no seu bojo os frutos do vivido, e, acredito que a liberdade vem com a consciência, e esta com o conhecimento... Logo, como ser livre para fazer escolhas quando não se conhece a realidade de um ESF, em vários lugares? Quando não se convive com a realidade de setores de urgência e emergência hospitalar? Acredito também, que o mal uso do patrimônio público proporcione esta indignação, assim, como acredito que o atendimento obtido de algumas pessoas, que não são médicos, mas estão médicos, e que nem examinam direito e nem dão atenção aos seus pacientes (clientes) fazem com que muitos aceitem a vinda de outros profissionais, na esperança de dias melhores... Porém, profissionais como você que, pelo que mostrou ama a profissão e é comprometido com o que faz pode sim, proporcionar um outro olhar, crítico reflexivo sobre esta realidade,e, então, conscientes, possam fazer outras escolhas e tecerem outras opiniões...Afinal, acredito que o conhecimento, o conhecer ajuda a ampliar olhares e, uma vez que houve esta ampliação, não há como voltar atrás... E, finalmente, decisões acertadas poderão ser tomadas e a liberdade, enquanto a consciência de que se tem escolhas, mas que se deve sempre assumir as responsabilidades com as mesmas, predomine sabiamente... Obrigada pelas reflexões oriundas de sua partilha!! Paz e bem!
Cara,voce devia escrever mais,tpo assim...todos os dias,eu além de entender tudo,aprendo um bocado.
Obrigada,
Flavia
Obrigado a todos pelos comentários e incentivos!
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