terça-feira, 30 de setembro de 2014

Democracia e Alternância de Poder


Por Pedro Lobo Martins

Democracia não é só o poder nas mãos da maioria. É, muito mais do que isso, o respeito a alguns princípios e pressupostos básicos, mas não muito óbvios. Após séculos de gestação o ocidente deu à luz algo inusitado, uma raridade ainda nos dias de hoje: o Estado submetido ao Império da Lei e transparente, responsável por seus atos perante o cidadão livre e, por sua vez, responsável pelos seus próprios atos. Tudo inscrito na letra de uma Constituição democrática. Somos herdeiros dessa tradição ocidental, mas parece que estamos longe de aplicá-la a contento.

As democracias maduras encontraram formas de se manterem maduras. Uma delas é a alternância de poder. Um partido de centro-direita se alterna com um partido de centro-esquerda. Partidos mais extremos à direita e à esquerda, por ignorarem ideais democráticos em seus programas, são por sua vez ignorados pelo eleitor.

Grosso modo, o partido de centro-direita, com suas políticas liberais, cria um ambiente de expectativas sólidas em que os investimentos privados, a poupança interna e o mérito são incentivados. As bases para o crescimento econômico são lançadas. Então alguns setores da sociedade reclamam. Não estão usufruindo da sua devida porção do bolo em crescimento. O partido de centro-esquerda ganha as eleições e põe em ação seu programa (democrático), que leva o crescimento às camadas com menor poder econômico. É parte do jogo.

Com o tempo, porém, incertezas se avolumam, a insegurança das pessoas cresce, o ambiente macroeconômico deteriora, os investimentos caem, as contas públicas fazem água, a inflação sobe e o eleitor se lembra de que 2 mais 2 são 4, e não 5. Vota então no partido de centro-direita para inaugurar um novo ciclo de crescimento econômico.

Assim funciona nos Estados Unidos, em que o partido Republicano se alterna há décadas com o Partido Democrata. Ou com a Inglaterra, em que o Partido Conservador sempre trocou cadeiras com o Partido Trabalhista. Ou na Alemanha, na Espanha, na França e nas melhores democracias ocidentais. Em cada uma delas o governante é mantido refém pelos seus eleitores e pelos ideais democráticos neles devidamente incorporados.





Nesses países a democracia é madura porque o eleitor amadureceu depois de séculos de experiências políticas, algumas salutares e outras desastrosas. A Revolução Gloriosa, de 1688, em que o rei da Inglaterra se submeteu à vontade do parlamento, colocando-se abaixo de Deus mas também das leis, foi o marco inaugural das modernas democracias. Mas assim como o voto universal não apareceu da noite para o dia, o Império da Lei não se fez valer em todos os lugares. Muitos tiranos, eleitos ou não, resistiram e resistem, ainda que informalmente, a postar-se diante dos pressupostos democráticos instituídos na letra da Lei, tornando suprema a sua vontade e a de seu Partido e impondo suas próprias leis.


É o caso do Brasil atual. A Revolução Gloriosa e seus desdobramentos não atravessaram o Atlântico. Embora o governo Lula tenha inicialmente se tingido de um matiz de centro-esquerda, dando continuidade às políticas austeras de FHC e angariando a condescendência e até mesmo a simpatia de setores mais conservadores da sociedade, não demorou a abrir as portas para alas mais à esquerda do Partido dos Trabalhadores e de suas bases, afastando-se gradualmente de posições mais moderadas e da letra da Lei. A esperança de um Lula atento aos pressupostos democráticos desvaneceu-se à medida que os escândalos começaram a avolumar-se em meio a atentados flagrantes à Lei e às diversas liberdades, individuais e institucionais. Com Dilma não foi diferente.


Para piorar, no Brasil os partidos políticos disfarçam seus programas sob matizes ideológicos indistintos, quando muito existentes. Grupos e grupelhos patrimonialistas usam o Estado, saqueando-o, e valem-se de partidos fisiológicos para satisfazer projetos pessoais. Larga parcela da população, pouco informada ou independente, vê nos políticos um meio de alcançar seus anseios de cunho meramente pessoal e imediatista. E as cadeiras dos parlamentos se enchem de sujeitos amorfos, sem ideologia, que não representam nada mais do que seus próprios interesses e os de seus compadres.


Nenhuma democracia sobrevive incólume à falta de alternância de poder. Infelizmente, nas eleições federais que se aproximam, provavelmente não haverá alternância. O eleitor escolherá o continuismo. Continuará a ser assistido pelo Estado, sem porta de saída. E verá a imprensa ser gradativamente calada, políticos autoritários serem bajulados e estados da oposição serem alijados de verbas federais. Continuará a ver as raposas velhas e os velhos caciques serem cooptados e favorecidos, enquanto suas tramoias, crimes e escândalos serão acobertados. Verá muito mais mentiras. Verá o Banco Central tornar-se cada vez mais dependente da política menor do Palácio. Verá as futuras gerações (que ainda não votam) pagar pela omissão de reformar a Previdência Social. Verá as garras do Estado se estenderem a empresas privadas eficientes, estatizando-as, e verá o valor de mercado de algumas estatais, antes eficientes, virar pó. Verá a carga tributária aumentar ainda mais e a Lei de Responsabilidade Fiscal, essa coisa neoliberal, ser esquecida. Dentro da lógica desenvolvimentista do Partido, verá os gastos públicos ficarem fora de controle, o investimento e a produtividade caírem e a inflação voltar, com força.


Nas eleições de 4 de outubro o atual aparato de Estado provavelmente continuará entrincheirado nas diversas instâncias do poder, prosseguindo o aparelhamento do Estado. O Partido e seus militantes odeiam a democracia e nunca ouviram falar da Revolução Gloriosa de 1688, mãe de conceitos de que as democracias maduras se valeram para inserir seus cidadãos, em nome da liberdade, no seu projeto político e econômico de longo prazo. Mas certamente ouviram falar da Revolução Russa de 1917, que fracassou calamitosa e vergonhosamente depois de alijar seus pseudo-cidadãos da dignidade, da fraternidade, da liberdade e da própria vida em nome de uma utopia efêmera engendrada por um bando de intelectuais invejosos, desumanos e, senão mal intencionados, ignorantes.


Assim, o que se conforma é uma maioria que repentinamente descobriu que pode votar para saquear o tesouro e que ficará fiel ao Partido, que lhe promete o maior número de benefícios. Não é exatamente a receita para uma democracia duradoura; antes, é a receita para o seu colapso.


Embora vasta camada do eleitor do Partido seja composta por uma massa desinformada, volúvel e imediatista, há uma parcela que estudou e que lê jornais mas não quer alternância de poder porque não gosta da democracia, ou melhor: pensa que democracia é simplesmente a vontade da maioria, e não um conjunto de princípios e pressupostos construídos ainda antes da Revolução Gloriosa. Não reconhece a natureza humana porque nega o valor dos incentivos. Não reconhece o indivíduo porque menospreza a liberdade. Não reconhece o mérito porque é ressentida. 


E será responsável pelo que o Partido fizer depois das eleições.